O Cemitério
O CEMITÉRIO
A cada dia chegava mais gente do interior e acampava às margens do campo-santo cujo muro se estendia em enormes distâncias na periferia da cidade, à beira-mar. Eram pessoas de todos os tipos e origens que viajavam a pé, a cavalo, no lombo de burros ou em cima de carretas puxadas por esquálidos bois. Essas carretas de rodas largas chegavam rangendo nos eixos pela falta de graxa, mas ninguém se importava – o ruído fazia parte do ritual da chegada ou da saída daquela gente.
Nos muros do cemitério acotovelavam-se mulheres com longos vestidos, algumas mascando fumo que desprendia um fedor adocicado, e elas cuspiam no chão aquele líquido negro e asqueroso. Muitas comercializavam peixe em lodosas frituras e fabricavam desbotadas flores artificiais; pouco falavam entre si, e assim também só o necessário com os transeuntes - eventuais compradores de seus produtos.
Os homens que faziam parte dessa multidão encarregavam-se de dar comida aos animais e consertar as carretas que se quebravam constantemente depois de percorrer as longas trilhas cheias de buracos. Aqueles veículos iam e vinham para lugares distantes e os bois, se não eram substituídos, ficavam como aqueles, magros, e quase sem forças para o transporte.
Todos tinham notícias de um milagre que havia acontecido ali, mas a história nunca era a mesma tanto é que, definitivamente, não sabiam bem qual tipo de prodígio procuravam; cura para as doenças não era pois, em sua maioria, eram pessoas saudáveis. Algo as atraía para aquele local; simplesmente se satisfaziam em ali ficar contemplando as lápides e, sequer sonhar com o que diziam os pomposos letreiros dos epitáfios de bronze naquelas enormes placas de mármore ou granito. Todos, sem exceção, eram analfabetos.
De vez em quando acontecia de entrar um féretro. Coisa breve. Como não havia coveiros, os que conduziam o morto, sempre poucos e rápidos, traziam suas enxadas e pás, eles mesmo faziam o trabalho e desapareciam em seguida. Nada de cerimônias. Quando se olhava, apenas se via um monte de terra elevando-se do solo e as raras flores de papel compradas daquela gente à beira do muro.
Dentro os mortos, fora os vivos, e fora estes, o silêncio. Cada um ocupava harmoniosamente seu espaço Parecia que aquele convívio era tocado por alguma força mística que vinha de dentro dos muros.
Determinado dia chegou uma estranha e alta mulher, toda vestida de azul, com o cabelo avermelhado. Acreditava-se que veio numa dessas caravanas que procediam de lugares distantes. Ela percorreu aquele acampamento informal de ponta a ponta, falando com as pessoas numa língua estranha e meneando os quadris de forma provocativa. Não se sabia seu propósito, para eles era mais cômodo não saber quem era ela, nem de onde veio. Só notaram que desde que ela chegou, o comércio aumentou, as vendas se multiplicaram, as mulheres fizeram cada vez mais frituras, fabricavam mais flores falsas, mascavam mais fumo e cuspiam com mais voracidade. E os homens assavam enormes pedaços de peixe sem sal, porque, descobriram, a cada vez que punham um pedaço na boca ele se salgava sozinho.
Por esses dias, alguém notou, também, que faltava um dos maiores túmulos no centro do cemitério. O grande sepulcro desapareceu do dia para a noite e em toda a extensão onde se situava cresciam espadas-de-são-jorge. Não puderam relacionar o sumiço do túmulo com a presença da mulher.
Porém, um menino, uma das únicas crianças dentre os adultos, curioso e recém alfabetizado, notou nas roupas da mulher algumas letras. Era o letreiro do epitáfio que deveria estar no maior túmulo, agora desaparecido, e que jamais alguém soubera o que dizia. O epitáfio contava de como ela fora achada morta no mar e o corpo encontrado boiando seguido por um séqüito de peixes-espada.
Quando o menino contou isso aos demais, primeiro todos se surpreenderam de como ele poderia ter aprendido a ler e depois entenderam, após conhecer essa história, que a mulher de azul teria alguma relação com aquela sepultada no túmulo agora inexistente. Após esse dia, ela não mais foi vista por aquelas bandas. O tempo foi passando e foi esquecida.
Desapareceu também naquelas pessoas a vontade de vender e trocar qualquer coisa à beira daqueles muros; parecia que o interesse pelas histórias dos milagres e o mistério em torno disso se dissipavam. Abandonaram o local completamente desinteressadas, voltaram para suas terras em suas carretas cujas rodas rangiam um som rouco e nasalado. Aos poucos sumiam ao longe. Nunca mais ali foi sepultada qualquer pessoa, nem houve mais gente ao redor dos muros, tornando-se o cemitério morto para sempre.
Samuel Medeiros.
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