De Presente, Um Cadáver

Às vezes, é verdade; às vezes, é só uma mentira bem contada, baseada em situações irreais, mas que, sob as circunstâncias do momento, poderiam acontecer.

— Provérbio Hitaísta.

 

 

Tasrro se lembrava bem. Já no decorrer da década do retorno de Adrag, o Senhor do Caos e da Destruição, sua vida começara a desandar, acompanhando o rumo que o mundo parecia ter tomado. Ele só não sabia.

Sua mãe bem que avisou. Seus irmãos. Todos o alertaram para o mesmo fato: que o seu casamento com Ramara, fadado ao fracasso desde o começo, uma hora culminaria em desastre.

E foi exatamente o que aconteceu. Entretanto, demorou pelo menos uns dez anos para entender a real profundidade daquelas palavras. Havia total verdade nelas. Isso com certeza explicava por que Ramara o havia deixado por outro, justo quando o casamento parecia florescer.

“Meu novo homem é mais rico e muito melhor de cama!’’, foi a primeira coisa que ouvira dela quando descobrira a traição. Era impressionante, Ramara parecia sentir um prazer doentio em insultá-lo! Por quê?

Havia rumores de que essa infidelidade datava desde antes do casamento, segundo sua irmã, Tatiar. Mas não estava a fim de averiguar essa informação. Já sabia mais do que o que gostaria de saber e, àquela altura, desconfiava que fosse mesmo verdade, embora a opinião de Tatiar sobre Ramara sempre tendesse a ser enviesada; as duas se detestavam, e ela, assim como a mãe e os irmãos, a considerava uma psicopata, por conta de certas atitudes. Mas Tasrro discordava veementemente. Ramara podia ser o que for, mas chamá-la de psicopata seria um exagero muito grande. Havia sido uma namorada e uma esposa amorosa durante parte do casamento. Além disso, era fissurada pelos filhos. Mas, sim, era rude. Sim, não costumava ser muito gentil ou prestável. Nada gentil ou prestável, e muito menos sensata. Sim, tinha um difícil temperamento. Sim, não merecia a dedicação de nenhum cavalheiro. Adorava insultá-lo e humilhá-lo. Isso era verdade. Tudo isso era verdade.

“Como pude ter sido tão burro?”, refletia Tasrro, ao despertar cedo naquele cálido dia de verão, excepcionalmente quente para os padrões de Úistandei, e às vésperas do Feriado da Promessa Divina, surpreendido pelo toque do telec.

“Não é cedo demais para isso?”

Mesmo achando a hora inoportuna, apanhou o aparelho da mesinha de cabeceira, disposto como despertador, e converteu-o para a forma de tablete.

“Ramara Orinmuam Mazze’’, lia-se na tela.

A face de Tasrro iluminou-se. Sua vez na guarda compartilhada. Hora de buscar o filho, Bilo!

Atendeu a ligação, tão empolgado que quase se esqueceu da mulher intragável com quem tinha de lidar:

— Ramara?

Mas, naquela ocasião, não era ela quem falava do outro lado da linha. Em vez disso, uma voz masculina falou:

— Tasrro?

— Gaeir? — Franziu as sobrancelhas, aturdido.

Era o atual marido da ex-mulher. Aliás, podia ouvir a voz dela ao fundo, berrando, certamente em virtude dos impasses cotidianos que às vezes aparecem. Afinal, berrar era o agir natural de Ramara, a mulher mais escandalosa que já conhecera.

— Por que está me ligando? Aconteceu alguma coisa aí?

Sua voz denotava forte preocupação:

— Cheguei de viagem ontem. Sim. Aconteceu. Aconteceu uma coisa muito, muito séria.

— O quê?!

— É melhor você vir aqui e ouvir o que a Ramara tem para falar. Lamento dizer, mas é algo chocante demais para ser dito numa ligação. — Acrescentou com veemência, antes de desligar: — Venha logo, por favor! Precisamos de você aqui!

Tasrro ficou intrigado e, ao mesmo tempo, apreensivo. Sentindo como se estivesse tateando no escuro numa sala entulhada, esperando tocar em qualquer objeto, sem saber ao certo em quê, mas podendo, com isso, se machucar.

No primeiro andar da Esfera Central, terminou o desjejum, e foi correndo se vestir. Naquele horário, nem seu avô e sua avó, o patriarca e a matriarca da família, estiveram presentes à mesa. Dormiam profundamente ainda, na certa.

Abriu o guarda-roupa e escolheu as primeiras vestes que viu penduradas. Ausentou-se do quarto, contornou a lateral do corredor circundante, à esquerda, e cruzou o passadiço que lhe dava acesso à Espinha Dorsal, por onde percorria o elevador.

Desceu do terceiro andar da Esfera Central à Esfera Sul, em direção ao andar térreo.

Atravessou o saguão e o corredor que o ligava ao hall, saindo da residência pela porta dianteira. Como toda construção daquele estilo, consistia num amontoado de casas com formato esférico, interligadas por um cilindro gigante, composto internamente por um elevador e uma escadaria que o serpenteava nas paredes, abarcando diversas salas, próprias para serem utilizadas como estabelecimentos comerciais.

O galecão acinzentado-brilhante da família de Ramara ficava a algumas quadras de distância. Tempos atrás, havia sido alvo de todo tipo de publicidade. A cena de um dos crimes mais emblemáticos da história milenar da pacata Úistandei, onde uma criança, enquanto os genitores dormiam, fora raptada durante a noite por uma estranha figura encapuzada que tirara proveito de uma festa à fantasia na vizinhança para invadir a vóiller. Uma estação depois, acabou sendo encontrada morta nas matas de difícil acesso do Hemisfério Sul, lar da maioria dos seguidores de Adrag.

A região era mais vulnerável à presença do Inimigo devido à sua latitude meridional, estando mais próxima do Abismo dos Tentáculos Agourentos, o verdadeiro lugar dele.  Desse modo, a instalação de câmeras e drones para monitoramento era uma tarefa quase impossível. E mesmo após a Segunda Guerra Intergaláctica, já que a região continuava pouco explorada, algo que, devido ao seu tamanho, deveria levar certo tempo.

Na época do caso da criança morta, a polícia contratada seguiu o rastro do criminoso pelas filmagens externas e internas do galecão e dos lugares monitorados pelos quais ele passou sobrevoando na nave, mas, mesmo com muita labuta, não conseguiu capturá-lo, desencadeando em sérios problemas financeiros. Além disso, centenas de outras polícias também tentaram e falharam, perdendo a oportunidade de lucrar com a resolução do caso.

Durante os anos seguintes, os habitantes de Úistandei passaram a trancar a porta de casa todos os dias, por precaução, até que o caso caiu no esquecimento dos leigos e a vóiller segura, que todos conheciam, continuou mostrando-se pacata.

A residência em questão acabara sendo vendida pelos familiares da criança morta, que passaram a associar o lugar ao pesadelo que vivenciaram. Gaeir, um psiquiatra forense de renome, convencera a trisavó de Ramara a adquirir a propriedade, devido à sua paixão por estudar a mentalidade de criminosos. Queria ter a experiência de reconstruir mentalmente a cena do crime todos os dias, o que Tasrro achava muito bizarro.

Foi recebido pelo atual marido da ex-mulher na entrada principal, assim que chegou ao galecão, encontrando Ramara desabada de joelhos no assoalho, chorando alto, sem parar.

— O que aconteceu?! — indagou, erguendo um pouco a voz.

Obteve a resposta no segundo seguinte. À frente da ex-esposa, havia um papel manuseado. E, ao lado, um envelope aberto com o selo do Corvo-Correio.

Engoliu em seco.

Inclinou-se e apanhou o papel do chão. Numa caligrafia apressada e grande, lia-se:

 

Seu filho está comigo. 3 000 guings para o resgate.

Outubicker: Joesnabucro Binexundra Tollar

OBS.: se chamar uma polícia, eu vou matá-lo.

 

Seus olhos saltaram de repente.

— Pelas Lágrimas de Hita, quem escreveu isso?! — perguntou, atordoado, virando o papel para o lado oposto à procura do remetente. — Cadê meu filho?!

— O remetente é anônimo — atalhou Gaeir. — Naturalmente.

Tasrro agitou o papel no ar, exasperado.

— Mas como?! Quando?! Quando isso aconteceu?! Como vocês puderam permitir uma coisa dessas?! Faltou responsabilidade da parte de vocês, não é?!

— Não faltou nada… não faltou...  — A voz chorosa e entrecortada de Ramara soou abafada do chão.

— Alguém entrou aqui durante a noite — respondeu Gaeir sombriamente, pegando o papel de volta e guardando-o dobrado no bolso. — Estávamos dormindo. Entrou no nosso quarto, pegou Bilo do berço e deu uma injeção nele, provavelmente para não despertar e começar a chorar, o que teria nos acordado. Vimos hoje de manhã nas câmeras, assim que nos levantamos, e percebemos que ele tinha sumido. Mas não dá para saber quem é, claro. O sujeito se cobria com um capuz.

— Aquele mesmo caso… se repetindo! — horrorizou-se Tasrro, trazendo-o à lembrança.

— Pois é… — Gaeir soltou um suspiro pesado. — É isso que me preocupa… Será que é a mesma pessoa?

— Homem ou mulher?

— Assim como naquele caso, não deu para saber também. O capuz era folgado nele.

— Posso ver?

Erguendo o telec em sua direção, Gaeir lhe mostrou as filmagens internas e externas da residência.

A descrição feita pôde ser confirmada. Assim como no caso anterior, o criminoso partiu numa nave com a criança.

Tasrro desesperou-se.

— Deuses, parece ser a mesma pessoa mesmo! Parece até que é o mesmo... O que vamos fazer agora?! Preciso do meu filho vivo, preciso dele!...

— Dar o dinheiro a ele, óbvio! — Ramara levantou a cabeça do chão, de repente, exibindo uma expressão raivosa no rosto banhado por lágrimas. — Você queria o quê? Que corrêssemos o risco de contatar nossa seguradora para chamar uma polícia?!

— E onde vamos arranjar três mil guings?!

A mulher soltou uma risada artificial e sarcástica.

— Idiota, esqueceu de quem você é sobrinho?!

A imagem dos tios, Castrovis e Marla, materializou-se em sua mente.

Respirou fundo, tentando ficar calmo.

De fato, era a única saída.

— Deuses, será que eles já estão acordados? É fim de semana…

— Vamos tentar, pelo menos! — falou Ramara, apreensiva, enquanto se levantava.

Compareceram ao galecão verde-esmeralda com tons rosados, azulados e amarelados, a três quadras dali. A campainha soou várias vezes e não obtiveram resposta.

Pararam um tempo, desanimados, recostando-se na área exterior da gigante Esfera Sul, que se erguia a partir do subsolo, com sua base achatada, assim como o cume.

Ramara deslizou, lentamente, pela parede, até cair sentada no chão.

— Hita tenha misericórdia de nós! — Tasrro chorava intensamente. — Quero meu filho de volta, quero ele de volta agora!…

O rosto risonho de Bilo, com as icônicas bochechas rosadas, lhe veio à mente.

Lágrimas inúteis brotaram dos olhos daquele pai desolado, marcadas pelo profundo desespero e pavor.

O tempo se arrastava.

Na rua em frente, avistaram um homem alto, de ombros largos e andar ereto, trajando uma camisa sem mangas e uma bermuda esportiva.

Mesmo de longe, Tasrro o reconheceu. Era Janoer, um dos CEOs da sua seguradora, a Clenay. Estava voltando para casa, no fim de uma de suas corridas matinais.

Uma ideia finalmente lhe ocorreu.

— Ei, ele pode nos ajudar!

— Quem? O Janoer? — Ramara pôs-se de pé.

— Sim! Mora com eles. Com certeza tem muito mais intimidade com meus tios do que eu! Pode abrir a porta, se a gente contar o que aconteceu.

Ela e o marido concordaram.

Os três retomaram o caminho pelo jardim.

 À beira da calçada, Janoer, o genro querido de Castrovis e Marla, ao ouvir passos no gramado, correu os olhos mais adiante.

— Tasrro! Que bom ver você, rapaz! — exclamou, fazendo aproximação. — Companhia um tanto inusitada, hein? Pela cara de vocês, acredito que tenham uma boa razão para isso.

— E temos! — apressou-se a dizer, arfante.

Com a ajuda de Ramara e Gaeir, Tasrro contou o motivo da visita.

Uma sensação de pavor obscureceu o brilho nos olhos de Janoer.

— Vou ligar para eles agora, não se preocupem! — Acionou o telec no pulso e o converteu para a forma de tablete, levando-o ao ouvido. — Nesse minuto!

Durante a ligação que se seguiu, Janoer foi direto ao ponto, introduzindo o assunto de forma clara e precisa, como o bom orador que era. Ao fim da chamada, voltou-se para as visitas.

— Eles vão receber vocês lá na porta! Estão descendo. Rápido! — Ele os empurrou devagar. — Se apressem!

Agradeceram muito a ele, e o seguiram pela dianteira da propriedade.

Castrovis e Marla abriram a porta do galecão verde-esmeralda com tons rosados, azulados e amarelados.

— Pelos Deuses, que horrível! Que horrível! — A matriarca estava claramente apavorada.

— Já depositamos o dinheiro! — adiantou-se o patriarca, a voz trêmula. — Vão! Vão lá! Deem logo o dinheiro a ele!

Ramara acessou rapidamente o Outubicker no telec. Soltou um suspiro:

— Depositei…

 

 

***

 

 

Ficaram quase permanentemente em silêncio, impacientes, aguardando, cabisbaixos, o retorno do sequestrador, que combinara de deixar a criança no galecão da família de Ramara, que viajava com o filho mais velho do ex-casal.

Tasrro bem que tentou puxar assunto com a ex-esposa, no que dizia respeito aos filhos. O temperamento dela podia ser um empecilho para qualquer demonstração de amizade ou simpatia, mas, afinal, estavam juntos naquela empreitada. Pai e mãe, cúmplices na difícil missão de educar dois novos seres humanos, e prepará-los para a vida.

Ramara, no entanto, permaneceu impassível e agia como se o ex-marido falasse sozinho.

Vasculhando suas lembranças, Tasrro desconhecia por completo outra ocasião em que ela parecesse mais abalada.

Anoiteceu. Vários dias se passaram — dias sombrios que se arrastavam, como se impedissem que as horas avançassem em seu curso natural. Mas a espera, que pareceu infinita, não foi vã. Sabiam que demoraria, pois o sequestrador certamente estava no Hemisfério Sul, escondido no meio das matas.

A primeira noite do Feriado da Promessa Divina, que marcava a promessa de reconciliação entre os Deuses e as suas singelas criaturas, renovou as esperanças. Reuniram-se todos no galecão da família de Ramara, sem cerimônia, sem presentes, sem nada — sem dúvida, na pior noite de Feriado da Promessa Divina de suas vidas.

Conforme o esperado, no entanto, durante as horas derradeiras daquele dia para lá de soturno, um corvo pousou na caixa do Corvo-Correio, trazendo uma encomenda, e seguido por outros atrás.

As muitas lágrimas cessaram.

A luz arroxeada se acendeu, e tornou a minguar quando a encomenda foi retirada.

Era uma grande caixa, empacotada como se fosse um presente. Sobre ela, uma carta havia sido pregada. Lia-se, em tinta vermelha:

 

Meu presente do Feriado da Promessa Divina!

 

Desesperados, e sem saber no que pensar, desembrulharam a caixa com ferocidade e a abriram.

Seguiram-se gritos de horror.

Dentro havia um cadáver. O cadáver do pequeno Bilo.

 

 

***

 

 

O último acontecimento havia sido a gota d’água. O caso foi levado da seguradora Clenay para a polícia Segura-te, que deu início às investigações na manhã seguinte, após ser convocada uma reunião em cada um dos Conselhos de Patriarcas e Matriarcas do Grande Parque, repleto de esculturas meticulosamente polidas, a maioria homenageando figuras históricas, para comunicar às pessoas sobre o crime e o perigo iminente à espreita. Tudo dava uma sensação de que o Feriado da Promessa Divina tivera de ser cancelado.

Com isso, a segurança em Úistandei foi reforçada, e Tasrro, Ramara e Gaeir, depois de um tempo, chamados ao gabinete de Dambron e do avô, Seu Eddard, sob a vigilância de robôs.

— Que brincadeira foi essa?! — bradou Tasrro estonteado.

— É, que brincadeira foi essa?! — reiterou Ramara, às lágrimas, achando que enlouqueceria.

— “Não dá mais!’’, eu pensei comigo mesmo — disse Gaeir seriamente. — Temos que levar isso para uma polícia!

— Fizeram muito bem — aprovou Seu Eddard.

— Seguimos o rastro do criminoso pelas filmagens dos drones — anunciou Dambron calmamente. — Mas não conseguimos rastrear todo o seu percurso: ele viajou para o Hemisfério Sul e conseguiu nos despistar, desviando o caminho pelas florestas. Mas nossas investigações não foram em vão. Rastreamos a conta do Outubicker, que o criminoso nos forneceu naquela carta, anunciando o sequestro.

— E o que vocês descobriram? — indagou Tasrro, arfando de ansiedade. — Ah, se eu pego esse filho da puta! Que ele apodreça na cadeia! Que apodreça! Que apodreça!!… — Borrifos de lágrimas saltaram de seus olhos.

O rosto risonho do filho, com as icônicas bochechas rosadas, reapareceu, torturando a sua mente da pior maneira possível.

Nunca mais vou poder vê-lo de novo… Nunca mais…

Os dois policiais deixaram o ar escapar, pesarosos.

— Descobrimos que se trata da conta de um prisioneiro de origem tatilanthesa, um psiquiatra forense — assim como você, Gaeir —, detido por acobertar criminosos em troca de cobaias para experimentos psiquiátricos. Investigamos tudo sobre ele, o telec que ele usava, tudo — explicou Seu Eddard, e fez uma pausa. — Ou seja, se o sujeito está preso, o acesso à sua conta permanece proibido, o que nos levou à seguinte conclusão: alguém teve acesso à conta dele e a usou para não se identificar para a polícia.

— A conta dele foi hackeada?!

Seu Eddard suspirou.

— Aí que está o X da questão, Senhor Gaeir. O software de segurança não conseguiu detectar se a conta dele foi hackeada ou não. Ou seja, o suposto hacker fez o dever de casa direitinho. Tivemos que descobrir se o prisioneiro tinha ligação com algum possível suspeito… algo nessa linha.

Tasrro, Ramara e Gaeir absorveram aquelas palavras em reflexão e retribuíram o entendimento.

— Acabou que ouvimos relatos de outros casos semelhantes. Agora que tudo foi levado ao conhecimento do público — continuou Seu Eddard —, aquele caso anterior também está sendo relembrado: o vídeo do criminoso raptando a criança, que viralizou tempos atrás, está sendo revisto em massa agora. É interessante observar, olhando bem, que, tanto o do caso Bilo quanto o do caso da criança desaparecida e morta, o vídeo é, na verdade, o mesmo. Não, Senhor Gaeir?

O homem piscou, com um olhar desconfiado.

— O que está insinuando?

— Que o senhor fez uma montagem. Crianças, quando muito pequenas, são muito parecidas, não? E pessoas são dificilmente identificadas debaixo dos lençóis, não são? Pegou esse vídeo antigo da internet e juntou com o das filmagens exteriores do mesmo galecão. Os drones puderam registrar também: você fingindo raptar a criança viva, quando ela já estava morta. Viajando para o Hemisfério Sul, despistando o caminho pelas florestas da região e depois voltando sem o capuz. Ordenando, ainda, que os corvos fossem buscar o cadáver da criança de volta no horário previsto, para dar ao caso um toque artístico, com um requinte de crueldade! Típico da mentalidade criminosa que você se aventura em estudar e tanto o fascina!

Gaeir gargalhou.

— Isso é ridículo! Fantástico! Fantástico! E quem matou a criança, então? Vai dizer que fui eu agora?!

— Não, não foi você. — Seu Eddard abriu um sorriso, um sorriso triunfante. — Foi sua esposa, é claro. A mulher que, se utilizando de um excelente bode expiatório, que lhe possibilitou um bom dinheiro, ainda por cima, você tentou acobertar, acobertar em troca de cobaia para experimentos psiquiátricos, assim como fazem os seus amigos daquela sociedade clandestina de psiquiatras forenses, de ajuda mútua e contínua, não é?!

Sua última fala desconcertou Gaeir por completo.

— Foi um acidente doméstico! — Ramara se levantou de uma vez, desatando a chorar. — Eu juro! Não foi minha culpa!

— Acidente doméstico, é? — Dambron riu com escárnio. — E o que diz das filmagens externas do seu galecão, às quais tivemos acesso agora, quando fomos reforçar a segurança da vóiller? Que mostram essa sua relação um tanto ambígua com a criança, você chegando a se referir a ela como um “fardo’’ de que estava disposta a se livrar?!

Tasrro saltou da cadeira, estarrecido.

— Então é verdade isso?!

Seu Eddard silenciou por um momento e disse, lamentando:

— Receio que sim.

— Não, Tasrro! — gritou Ramara. — É mentira! É mentira!

— Então, vamos ver o que as filmagens internas do seu galecão têm a nos dizer… Não adianta tentar apagar, nosso contrato nos garante o acesso, ouviu?

Por um momento, Ramara pareceu aflita.

Seu Eddard sorriu, irônico, ao constatar.

— Nesse caso, vejo que sua consciência não está tão limpa como diz…

A mulher desarmou completamente. Chovia lágrimas de seus olhos.

— Mas eu não queria ter feito isso!… Eu juro!…

Talvez até não quisesse, mas o Tempo era o pai de todas as consequências. Prosseguia sua longa viagem, sempre linear: sem poder parar ou voltar atrás.

Alexandre Braga
Enviado por Alexandre Braga em 23/11/2024
Código do texto: T8203605
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