O TRAIDOR
Histórias verídicas
O TRAIDOR
A pequena cidade de Dziatoszyce, a beira do Dunajec, ao leste de Cracóvia, tinha mais de mil anos de história e sua catedral, dedicada a São Stanislaw, padroeiro da região, alguns menos, mas igualmente ricos em acontecimentos.
A história de Dziatogrado, como passou a chamar-se; começava em 1945 e sua catedral passara a ser ocupada para funções mais profanas... (Leia-se: funções governamentais).
Tirando essas e outras diferenças, a coincidência era completa.
O camarada comissário era o responsável encarregado de zelar pelo bem-estar da cidade e seus arredores. Não era uma tarefa agradável...
–(Como farão os capitalistas para vigiar o povo sem afogar-se num mar de papéis como este?)
De repente, mexendo em pastas de arquivo, sem querer derramou umas gotas de café que chegaram a salpicar umas impressões digitais nas pastas abertas.
Bem nessa hora toca o telefone:
–Sim... Quem? Quem...?
–...
–Ah...! Desculpe, camarada comissário geral. Não tinha entendido.
–....
–Sim; estou certo de que o Ministro de Telefones faz tudo o que pode...
–....
–Naturalmente, camarada comissário geral; sempre há traidores.
–....
–Tomarei medidas imediatas. (Maldição! Mais trabalho! E com esse idiota do comissário geral sempre se metendo em tudo.)
Pouco depois...
–Vou sair. Deixei uma ordem assinada sobre minha escrivaninha, camarada secretário. Ocupe-se de que se cumpra.
–Como o senhor ordene, camarada comissário!
*******.
Na noite desse dia, em sua granja fora da cidade, Stanislaw Cikutovitch deixava-se levar pelo costume de falar demais.
–Cada dia o pão está mais duro e seco, mulher. Por que tenho que entregar todo o trigo e depois comer esta porcaria?
–Por favor, Stanislaw, que as paredes têm ouvidos! Tenho medo quando você fala assim.
–Medo? Então não se pode fazer uma crítica construtiva? Pois para que você veja, penso falar sobre este tema na próxima assembleia mensal do Partido.
–Mas por que você não pode ser como todo mundo que obedece sem discutir?
–Acho que minha obrigação é ajudar o Partido a livrar-se dos burocratas que estão sempre fazendo confusões.
Stanislaw não se sentiria tão confiado se pudesse ver através das paredes de sua granja...
******.
–Deve ser aqui... Cikutovitch Stanislaw. Sim, é aqui.
–Boa noite, camarada. Procuro o camarada Cikutovitch Stanislaw.
–Stanislaw? Que... Que acontece, camarada sargento?
–Não posso dar informações. Tenho que levá-lo detido ao comissariado.
–Stanislaw! Que é que você fez? Que vai ser de nós?
–Deve haver algum erro, mulher. Sou um cidadão cumpridor...
–Sempre há algum erro; isso é o que dizem todos. Somente que depois, não existe tal erro. Vamos; camarada Cikutovitch.
–Não se aflija mulher. Tudo é um erro. Quando se esclarecer, voltarei. Talvez não demore muito.
–Stanislaw, Stanislaw! Por que você não me ouviu?
–Aonde vamos?
–Ao sub comissariado local. Sempre intervêm nestes casos.
–Ah! Ainda bem! Ali todos sabem quem sou e tudo se esclarecerá logo.
–Entre, camarada, e não diga idiotices.
–O prisioneiro Cikutovitch Stanislaw está aqui, camarada subcomissário.
–Camarada subcomissário! O senhor poderá corrigir este erro.
–Que erro?
–O senhor me conhece! Sou um cidadão leal ao Partido! Não entendo por que motivo me...
–Silencio! E como é que sendo leal ao Partido, está acusando agora as autoridades de cometerem erros estúpidos, de não cumprirem com seu dever, de não...
–Eu não quis dizer isso, camarada sub comi...
–E que quis dizer então?
–Que sou inocente! Juro!
–Inocente de quê?
–Não sei... Do que me acusam.
–Como sabe que o acusam de algo? Eu lhe direi! Porque é um porco traidor que vê que sua hora chegou e que terá que prestar contas ao povo que atraiçoou. O inspetor de segurança saberá obrigá-lo a falar. Guarda! Prisioneiro perigoso!
*******.
O inspetor de segurança era prático em seu oficio...
–Bem, camarada Cikutovitch! Imagino que já deve estar disposto a confessar.
–Confessar? Confessar o quê?
–Não me faça perder a paciência, camarada! Trabalhei muito hoje e já estou cansado!
–Mas é que eu não sei! Sempre segui as instruções do Partido e nunca desobedeci... Bem; somente uma vez.
–Estou vendo que começa a recordar. Que fez?
–Só guardei uma Bíblia que era de meu pai; uma lembrança.
–Ah! Posse de literatura subversiva... Que mais?
–Nada mais, camarada inspetor. Juro!
–Jura? Por Deus, acaso?
–Não, lógico. Por Marx e Lênin.
–Não adianta. Vejo que teremos que empregar métodos mais enérgicos.
–Que... Que vai fazer?
–Vamos ver se um pouco de soro da verdade refresca sua memória...
*******.
–Sim... Uma ou duas vezes, sintonizei uma radio do Oeste.
–Atenção a divulgação de propaganda imperialista... Que mais?
–E uma vez escrevi secretamente a minha irmã que mora na América.
–Fornecimento de informação confidencial aos inimigos do povo.
–No Natal de 1965 matei umas galinhas e as comemos.
–Natal? Que é isso?
–Natal... Dia vinte e cinco de dezembro. Antes nós festejávamos.
–Celebração de ritos burgueses. Roubo de propriedade comunitária...
–...Estava doente e não pude pulverizar a tempo. Por isso os fitófagos destruíram a colheita.
–Já suspeitava! Sabotagem!
Finalmente a droga o insensibilizou. Foi jogado, então, num calabouço para dormir e eliminar o tóxico de seu sangue.
Na manhã seguinte...
–Deve conduzi-lo ao comissariado. Coloque-lhe grilhões; é um delinquente perigoso, camarada guarda.
–Há dias que o ônibus não anda. Quebrou-se e parece que não há peças.
–Cuidado com o que diz, camarada. Fale menos e leve-o a pé.
–Mas são mais de cinco quilômetros!... Certo, vamos; camarada, vamos! Não me dê mais trabalho que o necessário.
*******.
O sol e o ar puro clarearam a cabeça de Stanislaw, mas não sua confusão.
Como era possível que ele, que sempre tinha trabalhado com fé e entusiasmo pelo Partido, acabasse como um sujo traidor? Não o compreendia...
–Posso sentar-me um momento para descansar, camarada?
–Bem... Se prometer depois caminhar depressa. Não convém chegar tarde; fazem perguntas. Quer fumar?
–Obrigado, camarada guarda! Você é jovem, não?
–Não tanto. Sou de 1947.
–Então não conheceu o antigo regime...
–Felizmente! Dizem que era espantoso... Você deve lembrar-se, não?
–Há anos que não pensava nisso. Lembro-me, porém, que não estávamos tão mal.
–Mas os capitalistas os exploravam como escravos!
–Talvez... Mas sempre havia pão branco e fresco em nossas mesas e nos divertíamos nas festas e nos bailes.
–Pão e circo! Tal como o instrutor de doutrinação nos conta que faziam os imperadores romanos. E religião; muita religião para tê-los tranquilos e submissos. Bem! Vamos andando, que já é tarde.
–...e tínhamos direito de mudar de trabalho e até viajar sem pedir licença.
–Direito? Esses não eram direitos; era simplesmente desordem. Somente agora temos direitos.
–Que direitos? Trabalhar duro... Ir a reuniões... Votar pelo Partido, e que nos dão em troca?
–A felicidade do povo, naturalmente.
–Felicidade? Você é feliz?
–Claro que sou feliz. Não tenho que me preocupar por nada: o Estado me dá tudo, alimento roupa, casa. Que mais poderia pedir?
–Talvez tenha razão. Até ontem eu pensava assim. Mas hoje acho que para trabalhar, comer e dormir, não vale a pena continuar vivendo. Olhe! Que é aquilo?
–Que coisa? Não vejo nada... Que era? Hei! Que faz? Volte aqui! Volte ou disparo! Não me obrigue a atirar!
–Aaaagh!
–Está morto! Por quê fez isso, insensato? Sabe quantas perguntas vou ter que responder?
*******.
Seus temores não eram infundados. Essa mesma tarde, no escritório do comissário...
–Os quatro camaradas que o senhor citou estão aqui.
–Ah, sim! Que entrem.
–Camaradas, não estou satisfeito com as informações do caso Cikutovitch. Gostaria de saber o que aconteceu realmente. O senhor primeiro, camarada sargento.
–Seguindo sua ordem, camarada comissário, mandei prender Cikutovitch Stanislaw ontem à noite.
–Minha ordem? Está certo que diz “prender”?
–Aqui diz: “localizar e conduzir ao comissariado”.
–Mas não diz “prender”.
–É a mesma coisa. Todos sabemos que, às vezes, põe-se assim quando se trata de algum influente.
–Pode ser... E o senhor que diz, camarada subcomissário?
–Percebi logo que se tratava de um perigoso delinquente, camarada comissário.
–Sim, estou vendo o carimbo. Mas por quê?
–Por sua obstinação em negar tudo e afirmar que se tratava de um engano. É típico.
–Entendo... Que diz o senhor, camarada inspetor de segurança?
–Está no meu informe, camarada comissário. Literatura subversiva; propaganda; cumplicidade com os imperialistas; roubo; sabotagem e outras coisas. Muito perigoso.
–Suponho que toda esta... autocrítica terá sido feita sob a influencia de drogas.
–Somente um pouco de Pentotal, camarada comissário. É a única maneira de fazer com que esses traidores confessem.
–Às vezes me pergunto que diríamos o senhor ou eu, com essa droga nas veias... E você, camarada guarda; que tem para dizer?
–Conduzia o prisioneiro até aqui, camarada comissário. Começou a portar-se de uma maneira estranha e a repetir mentiras capitalistas. Disse-lhe que se calasse, e então virou louco e tentou escapar. Não tive outro remédio que disparar.
–Bem... Penso que será melhor que tudo isso fique entre nós, porque Cikutovitch Stanislaw era considerado um cidadão exemplar pelo Serviço de Inteligência do Estado , o Escritório de Informações do Exército e o Serviço Secreto do Partido. Mandei-o chamar porque houve um... Acidente; e a impressão digital do seu anular direito, em seus papéis, foi destruída. Mas não tem importância. Já mandei tirar a impressão digital do cadáver, e de todo jeito, a ficha irá para o arquivo.
*******.