EXCEÇÃO A REGRA
Essa história começa na ladeira que dá acesso ao morro Dona Marta, em função do mirante homônimo, que a 360 metros de altitude permite panorâmica vista da cidade. Para alguns moradores, o morro é conhecido como Santa Marta. Foi nesse encontro de moradias informais, com o asfalto formal que cresceu Zé Ricardo, um moleque de olhos claros, que sempre manteve suas madeixas descoloridas, que o alivia de muitas duras de policiais militares.
Em seu apartamento na rua Marechal Francisco de Moura, de frente para a favela era o único componente da família a conversar com o Zé Mário irmão mais velho, porque conseguiu aprender libras, a linguagem brasileira de sinais em curso online no Youtube, pois seu irmão ficou surdo ainda bebê, após infecção generalizada no tímpano de ambos ouvidos. Os pais se contentavam em conversar com o filho através da interferência do caçula.
Além de libras, Zé Ricardo, também ficou conhecido como trambique, depois que desenvolveu habilidades no campo do furto, diga-se de passagem, pequenos furtos, afinal, o sujeito só pensava naquilo, não importando onde estivesse, surgia a oportunidade e ele não abria mão de fazer sua parte.
Naquele tempo, em que o acesso para os ônibus se fazia pela porta traseira, trambique se deslocava pela cidade sem custo, alguns motoristas já manjavam o lorinho, mas isso não o impedia de saltar do veículo quando bem entendesse. Para despistar motoristas descia as vezes um ponto antes, ou um depois do habitual.
Nas idas ao Maracanã, para assistir o mengão levava no bolso uma cordinha, que era o álibi para sair da geral para cadeiras inferiores. Às vezes, aproveitava a facilidade de todo mundo ficar em pé, e muito próximo para surrupiar a carteira de alguém. Das cadeiras inferiores conseguia facilmente alcançar seu objetivo, a torcida jovem do Flamengo na arquibancada, onde berrava tanto durante o jogo, que voltava para casa invariavelmente rouco.
Seu local preferido para pequenos furtos era mesmo os supermercados de Botafogo, onde habitualmente degustava sua sobremesa, e a preferência ficava no corredor de chocolates, onde escolhia algum importado, sabidamente mais saboroso.
Nos dias quentes de verão ia lá para se hidratar, ora com água mesmo, ora com algum refrigerante. Invariavelmente com a cesta na mão, ia pegando produtos, retirados de gôndolas onde comia quitutes de sua preferência, ao final do périplo, abandonava a cesta, e passava pelo caixa carregando uma bisnaga.
A recente proliferação de farmácias e de produtos ofertados ao alcance das mãos, diante do caixa se transformou na mais nova tentação de Trambique, que inclusive se oferece para comprar medicamentos para idosos de seu prédio.
Na escola, nosso nobre personagem aprontou poucas e boas, fazia lá seu trabalho mais perigoso, se esconder ao final do dia, e posteriormente entrar na sala de Xerox para fotografar parte das provas mensais e posteriormente negociar as questões com colegas que conviviam com desempenho pífio nas provas anteriores.
Trambique, assim como todo mundo focado, estava sempre atento a tudo que acontecia em seu entorno, numa busca incansável por situações, que lhe permitisse auferir vantagem. No auge do verão, passeava pela praia com uma mochila dotada de vários compartimentos e uma bola de vôlei na mão.
Escolhia com calma a vítima, e no momento do bote, jogava a bola no alvo, quando abaixava não pegava só a bola, saía caminhando tranquilamente para outro ponto distante. Nesse ínterim, resgatava o que lhe interessava e dispensava o restante ali mesmo na praia.
Sua expertise para o que faz, e claro, a sorte que acompanha quem meticulosamente planeja suas ações, mantém Trambique invicto nessa atividade, ou seja, nunca foi flagrado em suas pequenas falcatruas. Para ele, pelo menos até agora, o crime vem recompensando e bem.