Guerra Postal

1

Um evento aparentemente banal acabou desencadeando uma série de eventos bizarros na vida do jovem João. Era quarta-feira de cinzas, um dia em que ele está de ressaca por causa de dias anteriores, quando alguém gritou seu nome do lado de fora do beco onde fica a casa dele.

“Encomenda para João!”, berrava o suposto entregador.

Deveria atender? Essa pergunta é estranha, verdade, mas João vive em um bairro violento: Cosme de Farias, que fica em Salvador, Bahia. Ele tem motivos para ficar ressabiado com supostas entregas de encomendas em plena quarta-feira de cinzas. João conhece, por exemplo, casos de emboscadas em que o assassino se passou por carteiro ou entregador na quarta pós-Carnaval.

Ele acredita que não há razão para alguém querer apagar ele. Aí João lembra de casos em que pessoas foram mortas por razões triviais. Começou a se questionar se havia pisado no pé de alguém em alguma festa; se zombou do time perdedor de algum torcedor fanático; se beijou alguma mina cujo namorado é criminoso e ciumento; ou, uma hipótese mais plausível, que alguém que ele havia exposto num passado recente estava armando uma vingança.

Então, podemos dizer que uma dose de paranoia é justificável. Contudo, se estava sob a mira de assassinos que já sabiam onde ele morava, teria alguma escapatória? Mesmo que não atendesse, o sicário voltaria e não descansaria até terminar o serviço.

Depois dessa conclusão sombria, João lembrou da Sociedade Clotoniana, que tinha como seu lema maior um trecho tirado da obra “Meditações”, de Marco Aurélio: “entrega-te espontaneamente a Cloto, com teu assentimento a suportar todas as coisas desejadas a ela”. Cloto é uma divindade que fia a vida dos mortais. “Talvez Cloto quer que eu seja morto na porta de casa por um cara de bermuda se dizendo entregador de encomenda”, pensou João. Era um estoico e por isso desceu para atender a porta. Mas também deu espaço à razão para concluir que a probabilidade de ser assassinado desse jeito é baixíssima. Quantos caras de blusa regata entregam encomendas por aí? Quantas mortes resultaram disso? Não há dados, porém deve ser um número ínfimo.

João desce as escadas e abre a porta. O homem que o aguarda também é jovem. Como mencionado, seu estilo de roupa é informal. Nada indica que se trata de um assassino. O problema é que essa é uma característica dos melhores assassinos.

“Você é o destinatário? João?”

“Eu mesmo.”

“RG, por favor.”

João deu a numeração da sua identidade. Àquela altura, todo aquele receio relacionado ao medo de ser assassinado se dissipou. Ele se sentiu à vontade até para fazer perguntas ao entregador.

“Trabalhando numa quarta-feira de cinzas?”

“O que tem demais nisso?”

“Nunca vi carteiro trabalhar em dias como esse.”

“Não sou carteiro, ou melhor, não sou carteiro tradicional.”

“Há outro tipo de carteiro? Um carteiro alternativo?”

“Agora, sim.”

João olha para a carta que o cara te entregou. Foi escrita e postada pela avó dele. Quem ainda usa cartas na terceira década do século XXI?

“Pensei que os Correios tinham o monopólio postal.”

“Eles ainda têm. Em tese. Na prática, não. Tenha uma boa quarta-feira!”

Em outras palavras, parece que João foi atendido por um serviço postal que está na ilegalidade.

2

Na hora, João não deu muita atenção a esse detalhe do serviço de entrega de carta. A questão que tomou conta da sua mente: por que sua avó enviaria uma carta? Bastou ele abrir um pouco o envelope para que essa dúvida se dissipasse. Ele viu que se tratava de um bilhete vermelho. Era como um “ingresso” que permitia a contratação de alguma prostituta de luxo de Salvador. E sem gastar um único centavo.

Mais uma dúvida surgiu na sua mente: por que sua avó pagaria isso para ele? Então, a dúvida esboroou-se quando ele lembrou que a velha sempre perguntava se ele tinha namorada. E ele sempre respondia que estava solteiro.

“Um homem bonito como você? Por que não tem namorada? É tímido?” ela disse a ele, uma vez.

“Vó, eu não quero falar disso.”

Mas provavelmente foram as conversas dos pais de João que inspiraram a avó a pagar pelo bilhete vermelho.

Contexto: o vizinho que mora ao lado arrumou uma namorada. Era tudo que os pais de João precisavam para continuar apertando a mente do filho. Se antes eles diziam “todo mundo aqui no beco tem namorada, menos você e o cara que mora aí do lado”, agora eles dizem “todo mundo aqui no beco tem namorada, agora é todo mundo mesmo, menos você”. Homem bonito, João poderia conquistar a mulher que quisesse. Muitos caras fariam qualquer coisa para ser como ele. Entretanto, ele não dava muita importância a isso. Só que agora a pressão estava ficando insuportável.

A avó soube e isso a motivou a comprar o “ingresso” que João está em mãos. É provável que a prostituta seja treinada para fingir ser namorada do cliente. O bilhete era caro.

Depois dessas reflexões, João olhou o número de contato no bilhete e fez a ligação para o único local onde ele vale alguma coisa.

“Boa tarde, eu recebi um bilhete e…”

“Boa tarde, quais as letras e números do bilhete?”, perguntou a atendente.

“TP49.”

“Deixa eu conferir… João Marcello?”

“Ele mesmo, mas como…”

“A contratante forneceu seus dados”, disse a atendente. “Diga um horário bom para você, que te diremos onde encontrar a profissional.”

Depois de dizer o horário apropriado, João anotou o endereço do local onde a profissional do sexo e do fingimento estaria. Um bar da orla soteropolitana.

3

Horas depois, João se arrumou para ir ao encontro. Ele passa pela sala onde sua mãe assiste a um programa policialesco. Normalmente, as reportagens são sobre a barbárie que provoca horror na sociedade baiana. Desta vez, havia uma situação peculiar. Aconteceu uma chacina com oito vítimas. A polícia jura que os rapazes mortos tinham envolvimento com o tráfico. Contudo, familiares e a comunidade afirmam obstinadamente que eles não eram envolvidos com o crime, que eram trabalhadores honestos.

“Mãe, vou sair. Volto mais tarde!”

“Vai aonde? Tome cuidado!”

“Aguarde com meu pai hoje à noite. Vocês vão ter uma surpresa”, afirmou João, quase rindo.

Quando saiu, encontrou Copérnico, que mora ao lado da casa dele. É o pai do vizinho que arrumou namorada.

“João! Tô sabendo que você foi atendido por gente que não presta!”, afirmou Copérnico, conhecido por ser um homem brincalhão, mas que parecia estar falando sério.

“Do que o senhor está falando?”, perguntou João, visivelmente confuso.

“Nada! Siga seu caminho.”

Copérnico era carteiro. Ou melhor, um carteiro tradicional, funcionário dos Correios. João entendeu que ele estava se referindo à carta que recebeu das mãos de um serviço de entrega que não era os Correios. Seria um caso estranho de ciúme entre carteiros.

4

João e Lúcia se encontraram no local combinado. Ele temia o beira-mar durante a noite. Quando é engolido pela escuridão da noite, o mar fica escuro e lembra o abismo. O bar estava cheio. O bilhete garantia descontos, mas João estava pensando em entrar em pânico mesmo assim. Lúcia era uma loira, parecia a Madonna. Ele havia ouvido falar que um cirurgião plástico fazia cirurgias em prostitutas para que elas parecessem celebridades. No entanto, ela era tão linda que o intimidava. Não teria coragem de tocar no assunto. Os dois conversaram até que João disse que outra coisa era mais importante que sexo.

“O quê? Você deve tá brincando! Isso não é sério!”, disse Lúcia, enquanto virava um copo de gim.

“É sério”, respondeu João. “Pensei que pudesse se passar por minha namorada.”

“Eu posso me passar por acompanhante por uma noite. E só. Não vou ficar um mês fingindo ser sua namorada”, disse Lúcia, quase elevando o tom. “E cara, você é um gato. Pode arrumar facilmente uma namorada.”

“Prometi a minha mãe que ela e meu pai teriam uma surpresa hoje.”

“Você quer que eu finja que sou sua namorada por quatro semanas? Só para impressionar seus pais? Gente… E se algum conhecido que já pagou por um programa me reconhecer lá em seu bairro?”

“Isso não vai rolar. Você é uma puta de luxo, atende em Horto Florestal, Alphaville I, parte nobre de Ondina e Barra, Campo Grande e Vitória. No meu bairro só tem gente ferrada que não poderia pagar pelos seus serviços nem se trabalhasse cinquenta anos.”

“Nossa. É isso que você pensa de seus vizinhos e conhecidos? Não me surpreende que você seja misantropo.”

“Não sou misantropo. Mas olha aí. Você falou ‘misantropo’. É uma puta culta. E, mais importante, você é gostosa. Quero deixar gente com inveja."

“Como eu disse, você poderia arrumar namorada sem precisar pagar um centavo. Você é estranho, mas ok”, afirmou Lúcia, cujo tom da voz ficou mais ameno. “E quando vamos fazer a outra coisa?”

Do bar foram a um motel, que também dava descontos se o cliente mostrasse o bilhete que João tinha. Quanto poder tinha um papelzinho vermelho. Os dois nem disseram nada. Foram se beijando de forma selvagem. Nem um pio. Já tinham conversado bastante no bar. Enquanto ficavam pelados, um barulho a algumas quadras de distância: “ratatatata…”.

“Ouviu isso?”, Lúcia perguntou.

“Ouvi. Drogados se matando.”

“Não…”

“Como ‘não’?”

“Não está sabendo? Pessoas supostamente inocentes estão sendo vítimas de assassinatos pela cidade.”

“Quê?”

Ele parou de beijá-la.

“Que foi, amor?”, ela perguntou.

“Você está me dizendo que gente inocente está sendo morta sem motivo? Ai, ai, ai…”

A paranoia de João voltou com tudo. Se gente inocente está sendo morta, pode-se considerar que está acontecendo uma “roleta russa” em Salvador, o que significa que ele, João, é uma vítima em potencial. A preocupação engoliu ele como a escuridão engole o mar à noite. Não conseguiu transar com a profissional.

5

Ainda assim, na mesma noite, ele levou a beldade para apresentar em casa e para desfilar pela rua. Vizinhos ficaram olhando, ele tinha razão. A “namorada” era mais gostosa que as namoradas dos vizinhos. E, claro, os pais ficaram impressionados. O plano está sendo perfeito.

“Pai, mãe, Lúcia. Lúcia, pai e mãe.”

Não ficaram embasbacados apenas por causa da beleza da moça. Ela sabia fazer tudo. Era prestativa e demonstrava inteligência e sagacidade.

“Você é uma moça incrível. Tomara que case com meu filho”, disse o pai. “Qual a sua profissão?”

“A profissão dela é a mais antiga do mundo, pai."

Lúcia ficou pasma, mas soube disfarçar.

“E qual a profissão mais antiga do mundo, João?”

“Li recentemente numa revista de jornalismo científico que a profissão de cozinheiro é a mais antiga do mundo. A reportagem é baseada num estudo da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. A função de arrumar comida e cozinhar é anterior a qualquer outra função. Há dois milhões de anos que a humanidade cozinha”, disse João.

“Temos um filho culto e uma possível nora culta. Imagina o filho de vocês”, disse a mãe, rindo.

6

No fim da noite, Lúcia disse que não poderia fingir que era namorada dele por quatro semanas. “Seu bilhete só vale por hoje, baby”, ela disse secamente antes de ir embora. “Poderia cumprir o que você quer só se você adquirisse 28 bilhetes”. Estranhamente, a postura fria da profissional deixou João triste. Havia algum tempo que ele não se sentia assim. Dormiu com os remédios que tomava nos tempos do trampo.

No outro dia, de manhã, ele estava sozinho em casa. E alguém bateu na sua porta. Ele levantou e olhou pela janela. Era Copérnico. João abriu a porta e o carteiro profissional tirou do bolso um envelope lascado.

“Encontrei isso no seu lixo”, disse Copérnico.

“E daí?”

“Você está mesmo sendo atendido por gente que não presta.”

“Você poderia ser mais direto?”

“Claro!”, Copérnico disse isso pouco antes de puxar uma pistola e apontar para João.

“Opa! O que é isso, Copérnico? O senhor me viu pequeno.”

“Por isso mesmo precisamos ter uma conversa.”

Copérnico mandou João voltar para dentro de casa. Em seguida, ele chamou seu filho Paulo e namorada Ana. Os três entraram na casa de João e fecharam a porta. “Meu filho você certamente conhece. Mas conhece a namorada dele?”

“Conheço. Talvez ela seja indiretamente responsável por isso que está acontecendo agora.”

“O quê?”, disse Ana, com um cenho confuso.

“Deixa quieto”, disse João. “Copérnico, por que isso? Por que está me ameaçando com uma arma?”

Copérnico olhou para Paulo. “Comece, filho”, ele disse.

Paulo começou uma longa história sobre o serviço postal brasileiro. Mencionou a origem dos Correios e de serviços clandestinos que entregavam cartas. Desde o Brasil Império, sempre surgem empresas ilegais que se atrevem a desafiar o monopólio postal dos Correios. É como se fosse um ciclo, uma série de repetições históricas. Serviços ilegais de entrega de cartas e cartões postais - duas ou mais - e se enfrentam entre si e lutam contra os Correios. Contudo, ao longo do tempo, esses conflitos ficavam mais violentos. Parece que naquele momento, estava acontecendo o ápice da brutalidade em relação a esses confrontos. No entanto, havia uma parte do enredo que nunca mudava: os Correios sempre venciam a guerra.

“Ouviu falar das chacinas, João?”, questionou Ana. “A polícia acusa as vítimas de serem viciadas devedores ou traficantes, mas os familiares contestam veementemente e dizem que elas eram honestas.”

“Você está me dizendo que as mortes têm relação com esse conflito entre empresas clandestinas de serviço postal?”, perguntou João. “Isso é loucura!”

“Agora você chegou ao ponto que queríamos”, afirmou Copérnico. “Se você duvida, que tal você mesmo investigar? Você era detetive.”

“Você disse certo. ‘Era’, um verbo que remete ao passado”, afirmou João. “Além disso, o João detetive era uma ficção”.

“Quem garante que nós não somos também?”, perguntou Paulo. “Serviços postais clandestinos se matando entre si me parece coisa que saiu da mente de algum ficcionista.”

Sim, João era detetive. Ele queria ser como personagens do Dashiell Hammett e Raymond Chandler, mas acabou sendo um investigador particular com peculiaridades que fugiam à regra das histórias norte-americanas de detetive. Ora, ele era um rapaz de Cosme de Farias. Evidente que ele seria um detetive com particularidades nunca vistas em literatura alguma. A não ser, claro, que ele próprio fosse um personagem de literatura. De qualquer modo, ele entrou no ramo quando soube que seu amigo de infância havia sido morto para que toda uma rua pudesse viver em paz.

“Está vendo isso aqui?”, Copérnico mostra o envelope. Tem um selo nele: “K”. É a marca de uma das duas empresas clandestinas de serviço postal. “O cara que te entregou a carta naquele dia estava armado. Ele estava doido para cruzar com um carteiro. Sorte dele que eu ainda não tinha arma alguma.”

“O senhor fala parecendo um gângster”, afirmou João.

“Por que será, hein?”, Copérnico fez uma pergunta sarcástica.

“Não vou investigar nada, Copérnico”, disse João. “Não adianta me ameaçar.”

“E se isso for mesmo uma guerra!? Vai me deixar morrer? Eu vi você pequeno!”

“Copérnico, procure a polícia.”

“Não estou pedindo que você troque tiro com carteiro não tradicional. Só quero que você descubra se as mortes têm a ver com isso. Eu te pago!”

João começou a se interessar. Ele ia pedir a quantia exata para poder pagar 28 bilhetes. Depois mudou de ideia e pensou em pedir mais, para gastar com Lúcia por aí. O trabalho se resumia em mergulhar na ficção chamada “João detetive” e descobrir algumas coisas.

“Dê-me alguns dias para pensar”, disse João, tão confiante que parecia outra pessoa.

7

Além do dinheiro, havia outra razão para João aceitar o trabalho. Desde que ele soube que as vítimas da chacina supostamente não tinham nenhum vínculo com o tráfico, ficou preocupado e mais paranoico, pois ele poderia ser uma vítima. Se confirmasse que as mortes estão relacionadas a uma guerra entre facções que querem se tornar monopólio postal, ele se sentiria mais seguro e, por consequência, com menos paranoia.

Ao sair do quarto e descer para a sala, João vê que sua mãe está assistindo “Violência Gratuita”, de Haneke. Era a cena do controle remoto.

“Olha que cena maluca!”, disse a mãe. “Acho esse filme uma porcaria.”

João também achava o filme uma porcaria, mas depois mudou de ideia. Ele aprendeu um blá blá blá teórico sobre pós-modernismo e quarta parede. Perguntou-se se tal recurso poderia ser aplicado na literatura. Claro que poderia. Tudo pode ser aplicado e relido na literatura. “Mas não seria original usar o controle”, pensou João.

Poderia refletir mais sobre o filme, porém existiam compromissos. Depois de avisar a Copérnico que aceitaria o trabalho, João foi atrás das informações sobre as vítimas.

8

Por motivos óbvios, a polícia se recusava a dar detalhes sobre investigações de homicídios. Mas João estava com sorte, pois não havia investigação alguma sobre a chacina dos supostos envolvidos com o tráfico de drogas. Ninguém ligava para as vítimas. Além disso, João estava atrás de dados básicos dos mortos. Uma pergunta essencial precisava ser respondida: em que ramo as vítimas trabalhavam? Graças a contatos na delegacia - que João cultivou desde quando começou a ser investigador particular -, ele teve acesso a essas informações. Então, o choque: todos se diziam carteiros. Entretanto, não trabalhavam nos Correios, a empresa pública que possuía o monopólio estatal. A conclusão seria óbvia: não eram carteiros tradicionais, mas clandestinos.

Será que isso confirmava a tese maluca de Copérnico? João se questionava. Se não for a confirmação da teoria conspiratória, seria muita coincidência acontecer uma chacina em que todas vítimas se diziam carteiros. Mas como era detetive, João ainda precisava manter o ceticismo. Apesar de absurda, a coincidência ainda era possível. Usar dessa informação básica para chegar a uma conclusão que afirma a existência de um embate centenário entre os Correios e empresas postais ilegais poderia resultar na falácia non sequitur. Seria necessário colher mais evidências antes de chegar a uma conclusão mais peremptória. Portanto, era preciso ir além desses dados. O detetive teria que entrevistar familiares das vítimas e ir ao local onde ocorreu o massacre.

Entrou novamente em contato com seus amigos da polícia. Mesmo assim, João encontrou muitas dificuldades em encontrar familiares dispostos a falar alguma coisa. Apenas a mãe de uma das vítimas queria conversar. Ela foi convencida porque o detetive afirmou que não acreditava na versão da polícia, que acusava o filho dela de ser um criminoso.

João foi ao encontro dela. Morava no Engenho Velho de Brotas. A casa dela ficava no fim de uma escadaria imensa. Era um local onde havia tráfico de drogas, o que não quer dizer que todo mundo ali fosse bandido. Na verdade, a bandidagem é minoria.

“Meu filho estava ganhando muito dinheiro entregando cartas”, disse a Josélia, a mãe de Vitor, um carteiro clandestino que foi morto na chacina. “A empresa entregava cartas de forma muito rápida. Era algo muito incomum. E entregava coisas que os Correios podem não entregar. Sabe do que falo? Coisas ilegais. Por isso cobrava fretes altíssimos. Também possuía parceria com outras empresas de negócios obscuros."

“A senhora se lembra do nome dessa empresa postal em que Vitor trabalhava?”, perguntou João.

Josélia levantou do sofá e foi até uma gaveta. Tirou dela uma folha de papel com vários selos. Ela mostra a João.

“Surreal Entregas” era o que estava escrito.

João lembrou do envelope que chegou às suas mãos. A empresa que lhe atendeu se chamava “K”. Presumivelmente K seria inimiga da Surreal Entregas. Ele lembrou da teoria conspiratória e da história contadas por Paulo: duas ou mais empresas postais marginais se enfrentam e enfrentam os Correios há mais de cem anos. Portanto, se não houver uma terceira ou quarta empresa ilegal no conflito, é razoável supor que a K está por trás da chacina. Mais informações poderiam estar no local dos assassinatos. O detetive agradeceu a Josélia e saiu da casa dela pensando em ir ao lugar do crime.

9

Se a teoria conspiratória estava correta, era evidente que não seria seguro ir até o local das mortes. João estaria lidando com empresas postais que funcionam como gangues. Por isso não se sabia o que ele poderia encontrar lá. Então, ele pediu ajuda. Foi à Sociedade Clotoniana, uma organização formada por pessoas estoicas ou que estão treinando para serem estoicas. O detetive foi pedir auxílio à pessoa mais durona de toda sociedade: Helena, uma ex-traficante de drogas que estava na faculdade de Marketing. Além da conhecida resiliência emocional que ela possuía, sua utilidade estava na sua experiência com facções criminosas. Ela nunca matou ninguém por causa de droga. O máximo que fez foi atirar no carro de um traficante adversário - mirou na orelha do cara e acertou. Helena era uma estrategista. Articulava ataques a “bocas” dos bandidos rivais pela cidade de Salvador, principalmente no bairro de Cosme de Farias. O que a atraiu para o estoicismo foi a personalidade do imperador romano Marco Aurélio, que liderou vitórias em conflitos militares.

“Marco Aurélio era o melhor estrategista da história”, dizia Helena. Várias vezes. O pessoal da Sociedade Clotoniana dizia que esse era seu bordão.

João foi informado que ela estaria na faculdade, provavelmente na aula sobre Philip Kotler. Ele esperou a aula acabar. Na saída, ela já estava à sua espera, pois havia visto sua mensagem no Whatsapp. Os dois foram à praça de alimentação da universidade.

“Você sabe que estou fora disso aí e que eu quero total distância”, disse Helena.

“Não é tráfico de drogas. Eu acho. Soube das chacinas?”, perguntou João.

“Soube. Mas para mim era tudo bandido. Familiares podem ter dificuldades em reconhecer que seus entes queridos não eram aquilo que eles pensavam que fosse.”

“Eu investiguei a vida das vítimas. Todos eram carteiros. Não carteiros dos Correios. Carteiros clandestinos.”

“Carteiros clandestinos? Isso existe? De qualquer forma, é uma baita coincidência.”

“Pode ser, pode não ser…”

“Está querendo dizer que as mortes têm a ver com o fato de todos eles serem carteiros?”

“Meu vizinho tem essa teoria.”

João explicou tudo a Helena. Falou sobre a teoria, a história, a guerra postal etc.

“Não acredito em nada disso”, afirmou Helena.

“O vizinho vai me pagar. Eu te dou um percentual se me acompanhar.”

“Agora, sim, você fez uma boa proposta.”

10

Helena e João seguiram de carro para o local da chacina. Ela estava armada.

“Por precaução”, disse Helena.

“Não entendo. Você disse que não queria ter nada a ver com coisas do crime. Por que tem uma arma?”

“Não é minha. Pedi emprestado para essa situação. Depois vou devolver.”

“O que é isso no chão? Um controle remoto?”, disse João.

“Não sei como foi parar aí. O carro também é emprestado.”

O carro chegou ao local. Era o pátio de um imenso depósito no bairro da Pituba. João investigou o motivo de as vítimas estarem reunidas ali e deduziu que aquele estabelecimento seria uma das sedes de uma das empresas clandestinas. Provável que seja da K. E a “Surreal Entregas”, ou outra empresa postal criminosa, foi até lá e meteu bala nos carteiros. Helena e João resolveram visitar o lugar à noite. Presumiram que não haveria atividade alguma. Foi um engano fatal.

Barulho de tiros. Para-brisa estraçalhando. Helena e João foram pegos numa emboscada assim que ela parou o carro a alguns metros do pátio. Ela foi atingida na cabeça. Alguém está atirando de cima do depósito. Talvez sejam dois atiradores. João tirou o cinto e se abaixou no carro. Ele não consegue pegar a arma de Helena. Estava muito encrencado. É questão de tempo até os caras pegarem ele.

Aí ele se lembra que o João detetive era uma ficção. E que na ficção é válido utilizar de certos artífices. O controle remoto era uma saída. Apertou o botão de replay e tudo começou a rodar de trás para frente—

O carro chegou ao local. Era o pátio de um imenso depósito no bairro da Pituba. João investigou o motivo de as vítimas estarem reunidas ali e deduziu que aquele estabelecimento seria uma das sedes de uma das empresas clandestinas. Provável que seja da K. E a “Surreal Entregas”, ou outra empresa postal criminosa, foi até lá e meteu bala nos carteiros. Helena e João resolveram visitar o lugar à noite. Acertadamente, eles deduziram que poderiam estar em perigo. Com a arma pronta para atirar, Helena acertou os atiradores que estavam na parte de cima do depósito. Ela possuía uma mira impressionante.

“Você viu que foi legítima defesa!”, Helena disse, visivelmente tensa. “Seu merda, olha a encrenca que você me meteu!”

“Eu te dou 50% do que o carteiro dos Correios me pagar!”

“Olha o depósito rápido”, ela disse. “Alguém escutou tiros. Vão chamar a polícia.”

A porta estava trancada. Eles teriam que arrombar, o que chamaria mais atenção.

“Vamos ter que ir embora daqui!”, disse Helena.

“Eu tenho que investigar melhor”, afirmou João.

“Então, fique aí sozinho, idiota! Você quer ser pego!?”

João não tinha como contestar. Helena estava certa. Eles planejavam checar o local de forma discreta. Mas os caras no telhado mudaram tudo. Ela teve que disparar e matar os caras. Os tiros chamaram atenção. Não vai ser possível investigar. Ambos entraram no carro e caíram fora.

Quando chegaram em Cosme de Farias, Helena desabafou.

“Desgraçado! Você me puxou de volta para o mau caminho.”

“Me perdoa, Helena!”

“Vai se f****! Não me procure mais, seu merda!” foram as últimas palavras dela antes de literalmente chutar João para fora do carro.

11

O detetive havia sentido na pele o perigo que aquele caso atraía. No entanto, ele não tinha nenhuma conclusão definitiva sobre o caso. Não conseguiu confirmar se a teoria da guerra postal era verdadeira. Os homens mortos por Helena foram tachados de “seguranças do crime organizado” pelos jornais. O termo “crime organizado” era genérico - poderia ser qualquer coisa, de drogas a entrega de cartas.

Ele procurou Copérnico. Mas encontrou só o filho dele e a namorada.

“Meu pai está escondido. Aqui o dinheiro que ele te deve”, disse Paulo, que havia preparado malas de viagem.

“Vai cair fora?”, perguntou João.

“Para um lugar ainda mais seguro”, disse Ana. “E se eu fosse você, deixava isso tudo de lado. Seu trabalho já foi feito.”

Ana tinha razão. E o que aconteceu na noite anterior deu combustível para João ficar fora dessa trama que ele sequer tem certeza de que se trata realmente de uma guerra entre gangues postais. Além disso, se a teoria contada por Paulo for verdadeira, isso significa que no fim os Correios vencerão de novo, embora isso também signifique que haverá um banho de sangue desta vez.

FIM

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 06/07/2024
Reeditado em 17/08/2024
Código do texto: T8101154
Classificação de conteúdo: seguro
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