Pai contra Mãe

O garotinho estava embaixo do cobertor grosso e com o rosto enfiado no colchão.

- Não tire o rosto do colchão por nada nesse mundo, pivete, ou teremos que te matar também, caso você veja nossos rostos. - disse o meu comparsa.

Em cima da mesa do pai morto com um tiro no olho direito, estava um papel de caderno sujo de sangue. Era a anotação de uma narrativa, não sei se era um trecho saído da mente do defunto ou se ele teria copiado de algum lugar. Achei interessante.

“O bandido não queria matar a mulher. Era uma fraqueza dele. Um matador profissional não pode ter remorso algum. Ele estava criando remorso, estava se autodestruindo. Era um caminho sem volta, porém havia uma forma de amenizar. A moeda. Decidiu que jogaria a moeda. Cara, atiraria na cabeça dela. Coroa, ela estaria salva. Jogou. A moeda caiu -” Depois dessa parte, há um longo trecho riscado com caneta, não dá para ler. Depois prossegue: “o bandido saiu do quarto e fechou a porta”. Os riscos foram para acobertar o destino da vítima. Fiquei sem saber qual lado da moeda caiu, se o cara matou ela ou não.

- Vamos embora, Golgo.

Fomos. Guardei o papel no bolso. Esse estilo que adoto aqui é confessional. Li algumas obras do James M. Cain. Ainda não me decidi se contarei o meu destino, leitor. Ou seja, onde estou agora. O que importa é um evento específico e seu contexto. Ainda não me decidi se contarei as consequências desse evento.

Primeiro, o contexto.

Outro dia, como em outros dias, fui à Biblioteca Pública. Peguei um manual de lógica. É engraçado, quantas vezes já escutei “é lógico!” vindo de alguém que acusava o que eu dizia de ser “óbvio”. Vi “lógico” escrito no livro e resolvi abrir. O manual falava sobre a falácia do ”Declive escorregadio” ou “Bola de Neve”. Diz a obra que essa falácia consiste em “tentar desqualificar o argumento que defende determinada causa” ou qualquer coisa, “alegando que determinada causa levará a coisas piores”. “Segundo o falacioso, A não pode ser defendido, pois levaria a B, que é pior, depois a C, que é pior ainda, e assim por diante”. Daí a analogia com a bola de neve, que vai crescendo à medida que rola numa montanha coberta de neve.

Ainda o manual: “A lógica pode ser, de alguma forma, abstrata, mas as argumentações lógicas utilizam de entes concretos”. Ou seja, acredito que “Bola de Neve” se aplica ao meu caso, mas não no sentido falacioso.

Há algum tempo ando vendendo drogas. Comecei fazendo coisas aparentemente inofensivas, como vender petecas minúsculas em becos. Mas traficar é um crime que leva a outros piores. O ideal é ser discreto. Chamar atenção demais dá merda. Se o traficante é favelado, portar pelo menos uma arma é inevitável, o que implica em outros crimes, mesmo que seja usada apenas para se defender. Logo eu estava com minha arma na cintura. Em muitos casos, é preciso usar a arma para manter a discrição. Logo eu estava usando da arma para intimidar vizinhos que tinham visto coisas demais ou para extorqui-los. Quando não se consegue manter a discrição, mesmo com arma, será necessário cometer delitos mais graves, como homicídios. Tinha um alcagueta falando demais no bairro. Atiramos várias vezes na cabeça dele. Comecei vendendo drogas em minúsculas quantidades. Hoje, eu mato.

Também não dá para fazer tudo sozinho. É preciso comparsas. O paradoxo (aprendi essa palavra lendo o mesmo manual): quanto mais comparsas, mais paranoia. Quanto maior a quadrilha, maior a preocupação com traições e crocodilagens. Alguém sendo pego, ela pode abrir como uma piranha e contar todo o esquema para a polícia. Ainda há o problema da concorrência, que nos obriga a partir para o confronto e a sujar as escadarias com sangue.

Enfim, o tráfico trouxe “ofícios” e desgraças. Matar, por variados motivos, era um modo de manter seguro os negócios do nosso grupo. Mata-se para “queimar arquivo”, para evitar a cadeia, para se livrar dos traíras, alcaguetes e caloteiros. Mata-se também para se vingar, mandar recado. Sempre tem alguém para fazer o serviço. Observe que em cada uma dessas finalidades do homicídio há uma “Bola de Neve” enrustida. São ações que levam a coisas piores.

Eu era baleiro. A prefeitura passou a proibir que baleiros pudessem vender em ônibus. A situação ficou mais difícil. Quatro filhos e uma esposa desempregada. Não demorou para cairmos na miséria. A princípio, queria continuar sendo uma pessoa limpa. Então, eu vi um colega baleiro que, de repente, estava andando de moto e usando corrente de ouro. Ele não teria condição de comprar aquelas coisas nem vendendo milhares de doces por mil anos. Perguntei e a “resposta” foi simplesmente levantar a camisa. Mostrou a arma. O que aconteceu em seguida foi a “Bola de Neve” que citei acima. Hoje, tenho vários crimes nas costas, inclusive homicídios. Mas meus filhos não precisam mais dividir o miojo.

Agora, o evento.

Uma facção adversária estava nos dando prejuízos. Ataques estratégicos destruíram nossas “bocas” fundamentais. Torturam e mataram dois dos nossos. Um era o irmão do chefe do nosso grupo. Ele estava determinado a se vingar. Iríamos matar não apenas para “mandar recado”, mas para “desequilibrar” a balança”.

- Eles mataram meu irmão. Mataremos dois entes queridos dele. - o Chefe se referia ao líder da gangue rival. - Golgo, sabe o que fazer.

Golgo sou eu. Eu virei o matador “oficial” da facção. Fui bem-sucedido em todas as tentativas de homicídio. Havia um boato pela cidade que dizia: “não há ninguém que Golgo não possa matar”. Eu era tão fatal quanto discreto. Outras organizações criminosas contrataram meus serviços, Entre elas, uma comandada pelo misterioso e mortal Pastor. Me sentia um espião internacional, embora nunca tivesse saído de Salvador. Poderia entrar em qualquer bairro, sem ser notado. A família do adversário era um alvo facílimo.

A casa da família do Adversário tem um único puxadinho. Mas e os lucros? Ou aquilo era fachada. Um homem sai da casa. É um coroa. Parece ser o pai do Adversário. Olhei por vários ângulos a casa. Só tinha duas pessoas dentro. Como o suposto pai saiu, só há uma. Como o Chefe só quer dois entes queridos mortos, eu entro mato quem está lá dentro e espero o pai chegar, para matá-lo também. Fácil.

Bato na porta, digo que quero informação. Uma mulher abre a porta. Meto o cano na barriga. Ou melhor, no barrigão. Porra, a mulher está grávida. Tudo muda? Poderia já ter atirado, mas hesitei. Não posso ter remorso. Arruína o trabalho. Mando ela sentar.

- Quem é você? Meu homem vai acabar com a sua vida!

- Cala a boca!

- Vai atirar numa mulher grávida?

- Cala a boca!

- Eu vou gritar.

Dei um soco na boca dela.

Já era para eu ter matado. Mas, porra, ela está grávida!

Lembrei do papel que tinha guardado e que levava comigo. O assassino com remorso, como eu. Enquanto isso, me perguntava: não tem como matar só a mãe e poupar o filho no ventre? Impossível! E agora? Ela viu meu rosto. Vai atrapalhar serviços futuros. Matei muita gente, mas essa é uma linha que não consigo ultrapassar, mesmo sendo um assassino implacável.

Então, eu vi a moeda. A moeda. Como o assassino da narrativa, decidi que jogaria a moeda. Cara, atiraria na cabeça dela. Coroa, ela estaria salva.

Ela chorava muito, com a boca sangrando. “Meu filho!”.

- Se cair do lado que te aniquilará, entenda que para mim não é nada pessoal. Para o Chefe, é.

Joguei a moeda. A moeda caiu.

Saí pela porta da frente. Essa é uma história confessional, mas sem nenhuma confissão específica e detalhada de algum crime bárbaro. Há menções mais genéricas a esse tipo de crime. O evento envolvendo a mulher grávida é um relato específico, mas a falta de conclusão deixa em aberto se o seu caráter é atroz ou não. Copiei a narrativa que foi riscada. Todavia, quero copiar de forma plena. Por isso, “riscarei” o que ocorreu logo após a moeda cair. Restará ao leitor conjecturar o destino da mulher grávida.

FIM