Jornalismo Econômico

- Desculpe, Rubem, não dá para publicar isso. Há números demais! Torna a história fria, sem vida.

Assim disse a editora do jornal Dinheiro Jogado Fora - publicação onde trabalho -, depois de ter lido minha reportagem sobre a taxa de desemprego do mês.

- Não há um único trabalhador fodido citado na sua reportagem. Tem que ter o elemento humano, senão não vai dar para publicar. De preferência, use o critério dentário como método de escolha. Quanto menos dentes tiver o trabalhador, mais fodido e adequado para reportagem ele é. E ele precisa ter carteira para ser assinada. Ah, e não se esqueça de tirar fotos. Vá até Beto e ele te dará uma câmera profissional ou poderá ele mesmo te acompanhar.

Fui até o fotógrafo Beto.

- Sinto muito, tenho outra pauta. Não vai dar para te acompanhar. Mas posso lhe emprestar uma câmera. E tome cuidado com essa porra!

- Vai perder a oportunidade de fotografar pessoas na fila do desemprego, Beto?

- Vou. E sabe por quê? Um bandido chamado Donkey Kong agrediu um policial lá em Tancredo Neves. Depois tomou a arma do Homem e o matou! A expectativa é de que haverá chacina no local. Tenho que estar pronto para tirar fotos. Não é só aqui que presto serviços. Vendo fotos para sites de cadáveres mutilados. São sites com muita audiência.

- Donkey Kong? Ele parece um gorila?

- Parece. Preto, alto e forte. É um homem morto. Vai ouvir falar e vai ler sobre a vida dele nos próximos dias.

Por aqui, se policial morre, há chacina dias depois. Muita coincidência. Donkey Kong é um homem condenado. É como se fosse o destino. Não há nada que possa salvá-lo. Ele sabe disso. O cara que mata um policial será caçado como um animal. Sem saída e sem recursos. Bandido pé de chinelo não tem a menor chance. Ou seja, DK está vivendo os últimos dias. Alguns ficam mais violentos e matam mais. Outros são bundas-moles e choram em seus cantos, esperando os carrascos.

Beto me emprestou a câmera. Agora só preciso ir nos lugares corretos. Mas antes preciso atender uma ligação. Era Liana Bertolazzi.

- Preciso te ver hoje. - ela diz.

- Estarei ocupado.

- Você trabalha igual a um escravo naquele jornal. Deveria fazer como eu e parar de trabalhar. Pelo menos, por ora.

- Você pediu demissão?

- Fui demitida.

- Por quê?

- A empresa está fazendo corte de gastos.

- Mas que ironia. Não é você que defende austeridade, nas entrevistas?

- Éééé… então não vamos nos ver hoje?

- Agora que você está desempregada, muda tudo.

- Às 21 horas, pode ser?

- Claro!

Liana é uma fonte. Economista formada e fazia parte, até então, de uma consultoria econômica. Diariamente eu ligava para ela, em busca de pautas e de aspas. Até que, de repente, estávamos conversando na cama, enquanto fazíamos outras coisas.

No restaurante.

- Então, você está desempregada. Vai ser minha fonte mais uma vez. Mas de um modo diferente das vezes anteriores.

- Você pode me usar do modo que quiser, Rubem. E eu me refiro a tudo que fazemos.

- Minha editora não gostou da reportagem sobre o aumento do desemprego. Só tinha números. Nenhum interesse humano.

- Esse ano de 2016 está catastrófico. Não vai ser difícil encontrar desempregados e fodidos.

- Opa, agora me lembrei de algo. Liana, abre bem a boca, por favor.

- Mas por quê? Normalmente não é aqui que você pede para eu abrir bem a boca…

Ela abre bem a boca.

- Eita, não vai dar para te usar como fonte, Liana. Porra!

- Mas por quê?

- Você tem uma boca perfeita. Tem todos os dentes!

No outro dia, pela manhã, peguei a câmera de Beto e meu bloco de anotações. Liana me deu carona até a entrada do SineBahia, uma instituição que intermedia pessoas em busca de emprego com as empresas em busca de empregados. Depois Liana seguiu o caminho dela. A fila, como sempre, estava imensa. Ali era o lugar perfeito para encontrar desempregados e fodidos. Uma fila de desmoralizados, pois como disse o jornalista Bernardo Kucinski, na obra Jornalismo Econômico, “o desemprego desmoraliza o trabalhador”. O problema é que eu precisava aplicar o critério da editora: a quantidade de dentes na boca era inversamente proporcional à relevância da fonte. Não ia dar para sair pedindo para todo mundo abrir a boca. Então o jeito era entrevistar e depois fazer o inusitado pedido. Enquanto eu analisava quem abordar, um homem com um colete de baleiro, mas sem mercadorias nas mãos, ficava me olhando. Há quem diga que subemprego equivale a desemprego disfarçado, porém não sei se minha editora aceitará essa definição, então o ignorei, a princípio.

Vi um coroa sentado o outro lado da pista. Ele estava na fila. Muita gente fica do outro lado aguardando, pois há lugar para sentar. O tempo de espera para ser atendido dura de duas a três horas.

- Há quanto tempo o senhor está desempregado.

- Uns cinco meses.

- Primeira vez aqui?

- Não, toda semana eu estou essa merda de fila.

- Mas eles não têm oferta ou tem, mas não te agrada?

- As duas coisas. Cara, eu sou técnico especializado em conserto de vaso sanitário e afins. Por um tempo, houve explosão de ofertas de “bicos”, pois uma comunidade em um bairro passou a acreditar que ETs estavam entre nós e que eles não gostavam de vasos sanitários que fazem muito barulho. Depois essa crença louca passou e eu tive que procurar um emprego com carteira. Mas por enquanto parece que querem alguém que liga com encanamento de modo geral. Vou ter que me virar.

Fiz mais algumas perguntas e pedi para ele abrir a boca. Relutantemente, ele abriu. Poucos dentes. Perfeito. Entrevistei mais algumas pessoas, gente com boas histórias, mas dentes demais. No total consegui o coroa e mais outro.

Tirei a câmera para fotografar a fila do desemprego. Configurei da forma como Beto ensinou. Tirei uma foto. Quando ia tirar a outra, um grupo de homens com coletes verdes se aproximaram. Entre eles estava o cara que estava me olhando mais cedo. Me cercaram, não consegui fugir. Perguntei o que queriam e como resposta levei um soco no estômago. Caí e eles começaram e me chutar. Levei vários chutes na cabeça. Eles queriam a câmera. E levaram.

No mesmo dia, em casa e todo machucado, fiquei me preparando psicologicamente para outra surra. Beto ia ficar puto. Câmera de dois mil reais roubada. Liguei a TV e o noticiário informa a morte de Donkey Kong e outras trinta pessoas do bairro. Um verdadeiro massacre. A polícia diz que todos eram bandidos e o repórter da TV acredita. Desligo e pego o celular. Ligo para Beto.

- Mas o quê? COMO VOCÊ PODE DEIXAR AQUELAS DESGRAÇAS PEGAREM A MINHA CÂMERA, SEU BUNDÃO!?

- Vários caras. Não pude revidar, nem impedir. Olha, são dois mil reais. Eu me viro, mas pago.

- Dois mil reais?

- Sim, o preço da câmera? Ah, não, vai me dizer que é mais caro?!

- Não, sua besta, comprei por 120. Não me pergunte onde. Mas vamos pegar essa câmera de volta AMANHÃ DE MANHÃ. Vá trabalhar normal.

- E se perguntarem dos hematomas?

- Diga que foi no sexo.

- Liana gosta de bater, mas nunca chegaria a esse ponto.

Por volta das cinco da manhã, lá estava eu no local que Beto marcou. Ele disse que um carro chegaria, me pegaria e eu diria quem era o cara que nos roubou. Iríamos circular pelas redondezas caçando os ladrões. O carro enfim chega.

- Entra. - diz Beto, que me puxa com truculência.

Dentro do carro, ele me dá cascudos.

- Que porra, moleque? Agora estou devendo favores por sua causa.

- Favores?

Beto me apresenta Sazonal, um traficante do bairro que poderia ter sido massacrado pela polícia, mas fugiu a tempo. O cara está armado e ajudará Beto a pegar a câmera de volta.

- Você só precisa dizer quem é o cara.

Me levaram até a fila onde eu estive no dia anterior. Olhei tudo, não vi nenhum dos bandidos. O carro ficou nas redondezas, por horas. Encheram gasolina só para isso. Até que eu vi o cara de colete de verde que estava me olhando antes do ataque.

- É aquele cara, vocês vão matá-lo?

- Vamos.

Em plena luz do dia, o carro subiu o passeio e atropelou o cara. Depois Beto o colocou para dentro do carro.

- Agora você vai para o trabalho, garoto. Não vai ser bom você assistir o que vai acontecer com esse cara.

- Você acha que vai recuperar a câmera?

- Com certeza.

Voltei para o trabalho. Nos dias seguintes, ataques violentos naquela área onde fica a fila. Pessoas do grupo que havia me atacado sendo executadas a sangue frio. Na semana seguinte ao massacre, Beto desfila com a câmera pela redação.

- Não falei que ia recuperar? - ele se gaba.

FIM