RATOS.

Quando ela se preparava para pular o muro e ganhar o vasto mundo de arbustos e lixo que se amontoavam do lado de fora, os policiais adentraram o terreiro imundo da casa e deram-lhe voz de prisão. Diante do corpo esguio e impotente, encolhido a um canto da parede sem reboco e coberta e pichações, os tiras arrefecerem o ímpeto de cruzar o protocolo e abrir fogo. Era ainda por cima menor de idade e estava desarmada, embora fosse capaz de mirar e observar o alvo antes de abrir fogo, sem ligar para olhares suplicantes, prantos e propostas, como um leão que observa e brinca com a caça já imobilizada, antes de desferir o último golpe . À sequência de perguntas que lhe eram feitas, ela respondia sem vontade, sem mudança de tom, sem choro, sem medo aparente. O olhar percorria impassível e devagar os rostos dos policiais, à medida que estes lhe faziam perguntas ou insinuações acusatórias. E foi com esse mesmo olhar que entrou na viatura e, na delegacia, foi submetida a um novo e minucioso interrogatório sobre o parceiro - autor de um homicídio torpe, ocorrido dias atrás - que estava com ela na casa e conseguiu fugir pouco antes da chegada da polícia. Falou pouco, também, à representante do órgão de proteção a menores infratores, que entrou no cartório da delegacia sem cumprimentar os presentes e exerceu seu papel com um profissionalismo tão cético quanto burocrático. Sozinha na sela, onde foi deixada em horas avançadas da madrugada, depois da oitiva, passava as horas deitada, folheando um livro dado pela assistente social. O olhar percorria as páginas lentamente e sem qualquer interesse pelo conteúdo do livro ou por qualquer outro signo existente ali. Comia pouco, era raro sentir fome a qualquer hora do dia, e só chamava os policiais para que acionassem a descarga da latrina situada atrás de uma mureta ao fundo do xadrez. Odiava com especial interesse o sujeito alto, musculatura adiposa, voz grave e rosto gorduroso que lhe deixava a marmita sempre a um canto da cela, rente às grades, fazendo comentários jocosos sobre o sabor da comida, uma mistura rançosa de arroz, feijão e uma meia de coxa de frango, impudicamente violada antes de chegar ao destino. No segundo dia de detenção, depois de receber o refugo deixado pelo sujeito, pegou calmamente o pequeno recipiente de papel alumínio e, na frente do carcereiro, despejou todo o conteúdo dentro do buraco no chão que servia de vaso sanitário. O sujeito fez menção de abrir a cela e a encarou como quem dissesse em termos claros e diretos que a faria se arrepender da afronta, mas desistiu ao perceber o desinteresse daquele olhar por qualquer forma de ameaça. No seguinte, a marmita veio com arroz, feijão e mais nada; o carcereiro fez questão de entregar em mãos e aguardou a reação da , pronto para fazer o que deixara , porém mais uma vez se viu, quando a viu acomodar a um canto do recinto, sentada no colchão, e comer com calma e com dignidade o conteúdo da marmita. Como cama, deram-lhe um colchão velho, ornamentado com nuvens de bolor e manchas diversas deixadas por inquilinas anteriores do xadrez. Somente no terceiro dia deixou a delegacia, após ser aceita em uma casa de detenção da capital, por insistência da autoridade local. A caminho da cidade, observando a paisagem ao longo da estrada, lembrou-se do terreno situado atrás da casa, onde o parceiro se abrenhara para escapar da polícia. Por um momento o imaginou perdido no matagal, arma em punho, esperando a noite chegar para ir à procura da estrada mais próxima e talvez para tentar uma carona. De súbito, a imagem do parceiro foi substituída pela de um rato que via passar, toda madrugada, em frente à cela, a procura dos restos de comida que ela deixara a um canto do recinto, próximos às grades. Lembrou-se de como o bicho esperava a noite chegar para realizar o mesmo trajeto, no mesmo horário, em busca da comida, sempre indolente, discreto, quase invisível. Com a imagem do rato retida na mente, ela adormeceu envolvida pelo instante presente e indiferente ao sacolejar do automóvel à passagem pelos buracos da via. E foi sem expectativas e receios que ela chegou ao destino e avançou em direção à porta de madeira repleta de cartazes cheios de ode à beleza da juventude e à fé no recomeço.

João Pegado
Enviado por João Pegado em 30/05/2021
Reeditado em 24/01/2022
Código do texto: T7267479
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