Sobre duas Rodas - Projeto Guepardo

Sobre duas Rodas

Dois longos anos sem entrar na oficina, sem analisar os papéis do projeto, sem sentir o cheiro de máquina em funcionamento. Doutor Flávio Salermo acionou os disjuntores trazendo luz aquele lugar esquecido por ele. A oficina lembra muito um terminal onde há computadores, bancadas repletas de materiais como, pranchetas, luminárias, teclados e muitas outras coisas que só ocupam espaço, sem utilidade alguma. Salermo caminhou até o cabideiro. Antes de colocar seu jaleco branco ele espanou a poeira de seu tecido. Ajeitou os óculos e se direcionou até uma porta feita de ferro. Quatro grandes cadeados garantem a segurança do material armazenado lá dentro. Devagar ele vai abrindo se preparando para rever seu projeto deixado ali por dois anos. Com um rangido a porta se abriu e lá está ela, o seu mais audacioso projeto. Flávio sentiu vontade de chorar.

- Meu Deus! – colocou a mão na boca.

Os dedos envelhecidos do doutor tatearam o emblema do projeto grifado.

- Guepardo. – balbuciou para ele mesmo.

Imediatamente o idoso foi ao comando principal e o ligou. Mesmo depois de dois anos o equipamento funcionou perfeitamente arrancando um largo sorriso do velho cientista. A máquina respondeu ao comando emitindo um bip.

- Ótimo, garota.

Salermo ligou o microfone. O testou dando um leve peteleco no captador e falou.

- Reativando a Guepardo, mês dois do ano de 2020, confirma?

A incrível máquina reagiu. Com o coração acelerado, Flávio Salermo pressionou o botão liberando outras funções do maquinário. Tudo em ordem. Salermo sentiu orgulho de tudo o que realizou. Não foram dias, mas sim anos na elaboração do projeto, tantos foram os desafios e até desavenças dentro de seu próprio lar. Valeu a pena. Ele agora tem diante dele uma potente e extraordinária máquina que pode revolucionar o mundo pós moderno.

- Tudo pronto. Resta somente encontrar um voluntário.

*

Tomando todos os cuidados, o sujeito abriu o cadeado que fecha o portão do galpão. Ele entrou, mas antes deu uma rápida olhada para o outro lado da rua. Sentado numa mesa de bar pé de chinelo tomando café num copo descartável está Tales Cardoso observando a movimentação na frente do galpão. A meses ele vem sondando o entra e sai do lugar. Assim que o sujeito entrou o policial sacou o rádio entrando em contato com a central.

- Temos um suspeito.

- Ótimo, aguarde, enviaremos reforços.

- Acho que já desconfiaram, vou entrar e ver mais de perto.

- Melhor não, você está sozinho, Cardoso, fique e aguarde o reforço.

- Copiei. – guardou o aparelho no bolso da jaqueta.

Cardoso está no encalço dos traficantes faz tempo e desde então ele vem investigando, vendo o melhor jeito de dar o bote certo. Mais do que nunca, agora ele sabe que está lidando com gente perigosa, gente graúda. Tales quer de qualquer forma acabar com a festa dessa vagabundagem. O agente terminou de tomar seu café e pagou pela bebida. Deixou sobre o balcão uma nota de dois reais e saiu. Tirou a arma do coldre e foi para a frente do galpão. O certo era esperar o reforço chegar, seguir as ordens do capitão, mas Tales e impulsivo, tem polícia correndo nas veias – eu mesmo posso fazer isso sozinho. O cadeado não estava trancado. Tales entrou e tudo estava num silêncio estranho. Caminhou sem fazer barulho entre as grandes caixas de madeira apontando sua pistola. Chegou perto de um caminhão com as portas do baú abertas. Lá dentro inúmeros papelotes de cocaína, pronta para ser distribuída nos grandes centros.

- Mais que merda. – pegava o rádio dentro do bolso quando sentiu o cano frio de uma arma em sua têmpora.

- Tem que ser muito burro para entrar aqui sozinho. Me dê sua arma. – mandou o traficante.

- Vamos com calma, ok? – Tales entregou a pistola.

- Sabemos que você vem nos observando faz tempo policial Tales Cardoso, não é esse seu nome? – colocou a arma do policial no cós da calça.

Cardoso engoliu seco.

- Andando, vamos, lá para os fundos.

Tales sabe que não conseguirá sair dali com vida, por isso ele precisa agir e rápido. Se tiver que cair ele vai cair atirando. Num giro inesperado – pelo menos para o bandido – Cardoso conseguiu sair da linha de tiro e segurar a mão do traficante. Com a outra mão livre ele golpeou o rosto do homem. Desequilibrado o vagabundo ainda tentou revidar, mas foi novamente golpeado, dessa vez no peito. O traficante perdeu o ar. Tales aproveitou para finalizar de uma vez a briga, porém não contava com a rápida recuperação do adversário. O agente recebeu dois fortes socos no rosto e caiu.

- Achou que poderia ganhar de mim? – o chutou no rosto.

Tales viu a chance de derruba-lo aplicando-lhe uma rasteira e foi o que fez. O meliante caiu batendo o rosto no chão. Cardoso rolou por cima já desferindo socos tentando nocauteá-lo. Houve uma intensa troca de socos até que um cruzado dado pelo bandido encaixou fazendo o policial tombar para o lado. Tales caiu de bruços. O traficante se levantou, pegou sua arma e atirou acertando as costas do policial. Tales Cardoso não se mexeu mais. Tranquilamente o assassino voltou a colocar a arma na cintura e andou até perto das outras caixas onde há drogas armazenadas. De repente ele é surpreendido por dezenas de oficiais da polícia, todos uniformizados e muito bem armados.

- Pro chão, mãos na cabeça, já. – gritou um deles.

Tales foi localizado e uma ambulância foi chamada. O ferimento felizmente não tirou a vida de Cardoso, mas infelizmente o deixou paralítico, isso todos puderam notar muito antes do socorro chegar. Tales não conseguia mover as pernas.

- Aquele desgraçado arruinou minha vida, eu não acredito nisso. – gritava.

Tales Cardoso foi levado para a unidade de saúde mais próxima, seu estado requeria cuidados. Todos envolvidos na operação estavam consternados e torciam pela rápida recuperação do companheiro de farda. Tales agiu por impulso e errou ao tentar prender sozinho um dos maiores traficantes de drogas da cidade e pagou caro por isso. Por outro lado, foi graças a esse ato irresponsável do agente que a polícia evitou que dezenas de milhares de jovem tivesse acesso a substância maldita. A cidade agora tem um novo herói e seu nome é Tales Cardoso.

*

Doutor Flávio terminou de realizar todos os testes na máquina Guepardo, resta apenas alguém se voluntáriar para assumir o comando. Salermo não está sozinho dessa vez, para ajudá-lo na tarefa ele contou com ajuda de sua auxiliar, doutora Gil, experiente e fiel escudeira desde os tempos de faculdade de Flávio.

- Gil, assim que eu der o sinal aperte o botão do comando central, tudo bem?

- Perfeito, doutor.

Flávio Salermo se acomodou na Guepardo. Segurou nos câmbios automáticos. Realmente uma baita máquina de combate. Quem diria? Um projeto milionário, esquecido nos fundos de um laboratório, hoje dará seu primeiro passo rumo ao futuro.

- Tudo bem, Gil, comando central, agora.

Doutora Gil apertou o botão e logo Guepardo ganhou vida. Flávio não conseguiu conter sua emoção. Ele olhou para sua ajudante que também tinha os olhos marejados e fez sinal de ok. Salermo testou toda parte funcional da máquina dando inúmeras voltas ao redor do laboratório e ficou satisfeito com o resultado. Enquanto isso, Gil anotava tudo numa agenda.

- Projeto Guepardo concluído com sucesso. – escreveu. – uma poderosa cadeira de rodas altamente equipada, uma arma de combate, pronta para entrar em ação. – deu o ponto final e fechou a agenda. – tudo anotado, Flávio.

- Ótimo. – parou a cadeira. – já temos a pessoa que sentará na Guepardo?

Nesse momento o celular de Gil vibrou no bolso.

- Acho que sim. – mostrou o aparelho.

Havia uma mensagem no WhatsApp, Gil leu em voz alta.

- Tales Cardoso, policial, 30 anos, foi atingido na coluna no mês passado e ainda se encontra internado, mas passa bem. – olhou para Salermo. – eis o nosso homem. – sorriu.

- Graças a Deus. – tirou o jaleco ficando somente com a camisa e gravata. – me passa o endereço do hospital, eu mesmo falo com ele.

- E eu, faço o que?

- Bom, passamos a tarde inteira aqui dentro. Vá para casa, peça uma pizza, durma bem, amanhã entrarei em contato com você e...

Estendeu a mão para ela.

- Muito obrigado pela sua lealdade, Gilmara.

- Você é o melhor, Flávio Salermo, me inspiro em você. – apertou a mão do velho.

*

Foram anos se dedicando até atingir seu objetivo. O sonho de Tales Cardoso era ser um oficial de polícia e poder contribuir de com a questão da segurança pública. Ele conseguiu. Sua sede de justiça o levou a fazer parte das maiores operações e prisões dos chefões do crime organizado. Seu currículo foi enriquecido ao colocar um ponto final nas gangues que controlavam não só o tráfico, como também a prostituição nos bairros pobres. Tales foi o responsável por limpar as vielas mais perigosas das periferias. Tudo isso ficou para trás quando aquela bala entrou e acertou sua coluna. Agora ele se encontra acamado, sem sentir suas pernas, sentindo pena de si mesmo dentro daquela enfermaria. Revolta seria a palavra certa para descrever o que Tales sente no momento. Ele tenta de todas as formas não chorar, mas as lágrimas descem. Ele as limpa antes que Alguém o surpreenda. Uma enfermeira lhe trouxe o remédio.

- Olá, como estamos hoje? Hora do remédio.

- Por um acaso esse remédio vai fazer com que eu volte a andar?

- Não. – fechou o cenho.

- Então porque a insistência com isso?

- Policial Tales Cardoso, o senhor pode questionar o seu médico se quiser, eu estou fazendo apenas o meu trabalho. Agora tome logo o remédio.

- Quando vou ter alta? – engoliu o comprimido.

- Pergunte ao seu médico e ah, já aí me esquecendo, você tem visita.

- Quem?

- Não sei. – fez anotações no prontuário. – posso manda-lo entrar?

- Por favor.

Flávio Salermo apareceu na sala da enfermaria vestido com seu terno azul claro acenando para Cardoso.

- Como tem passado, policial Tales?

- Me desculpa, a gente se conhece de onde? – se ergueu.

- Ah, sim, sou Flávio Salermo, você já deve ter ouvido falar de mim.

Tales apertou os olhos.

- Doutor Flávio Salermo, o cientista, a que devo a visita? Veio me trazer novas pernas?

Flávio se aproximou do leito ainda sem jeito.

- Quase isso. – parou e olhou para o corpo de Tales. – será perfeito.

- Perfeito o que, um aleijado? – riu.

- Vamos direto ao assunto. – pigarreou. – quero que conheça o meu projeto, a Guepardo.

- Desconheço. – franziu a testa.

- Veja detetive, quero que ouça com muita atenção e respeito. Sou o homem que pode lhe colocar outra vez em atividade, basta dizer sim.

- Espera aí. – espalmou. – está me dizendo que pode fazer nadar, é isso?

- Sim, mas em cima da Guepardo, a minha cadeira de rodas de combate.

Cético, Tales manteve o olhar no velho cientista.

- O senhor está me dizendo que desenvolveu uma cadeira de rodas especial, tipo, um tangue de guerra?

- Pronta para o uso, só preciso que aceite fazer parte.

Cardoso voltou a se deitar achando tudo aquilo muito confuso.

- Doutor Salermo, eu sofri um trauma muito grande, não é hora de tirar sarro com essa situação, por favor.

- Agente Tales, tenho cara de quem esteja brincando? Projetei a Guepardo durante anos e vejo que agora é a hora de colocá-la em ação. – pegou no bolso um cartão de visita e o deixou sobre a mesa. – caso se interesse, não hesite em me ligar.

Flávio deu as costas e se foi deixando Tales pensativo e porque não dizer um pouco mais reflexivo quanto as suas condições. Até pouco tempo atrás ele era um homem determinado, queria ganhar o mundo inteiro usando a força do seu distintivo. Hoje ele não é nem a sombra de que foi um dia. Em sua mente Tales se transformou num monte de carne deitado naquele leito de hospital. A porta da enfermaria se fechou levando embora talvez sua última e única oportunidade. Logo ele que pediu tanto por uma. Doutor Flávio deixou sobre a mesa o seu contato, Cardoso olhou para ele e o pegou.

- Vamos ver no que dá. (Continua)

Júlio Finegan
Enviado por Júlio Finegan em 11/05/2020
Código do texto: T6944522
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