O juiz

[Continuação de "O defensor"]

- Já vi casos mal-fundamentados, mas esse é um recorde - comentou o juiz Parrish, do Tribunal de Apelação federal para o Terceiro Circuito, ao examinar o veredito da corte de primeira instância.

- Mais acusações sem provas da polícia de Harrisburg, meritíssimo? - Indagou o estagiário que assessorava o jurista.

- Prenderam um cidadão por estar portando uma arma e fugir da polícia ao ser abordado - explicou Parrish. - Ora, no estado da Pensilvânia é presumidamente legal andar armado; o fato do réu não ter a devida licença para fazê-lo, constitui-se em mera infração administrativa, jamais em crime.

- Mas e o fato dele ter fugido da polícia, meritíssimo? Não é suspeito?

- A polícia não possuía qualquer razão concreta para abordá-lo, Sweeney - atalhou o juiz. - O bairro não apresenta altos índices de criminalidade, o acusado não foi visto fazendo nada de errado, e sequer a mulher que ligou para o 911 afirmou tê-lo visto com a arma na mão. Ela apenas suspeitava que ele estivesse armado, o que, por si só, não se configura como algo ilícito. Sobre a fuga diante da aproximação da polícia, sabemos que o relacionamento desta para com as minorias nem sempre é pautado pelos padrões mínimos de civilidade. Inda mais, como neste caso, em que o suspeito é um homem negro; entre indivíduos destas parcelas da população, fugir, mesmo para quem está perfeitamente inocente, pode ser encarado como uma reação normal e saudável face à brutalidade policial, ou mesmo para se furtar aos danos colaterais que a presença da polícia numa região pode acarretar.

E como o estagiário ainda parecesse em dúvida, o juiz acrescentou:

- A polícia de Harrisburg não é inocente nesta história, Sweeney. Estamos nos Estados Unidos da América, não numa república de bananas latinoamericana, ninguém é obrigado a parar apenas porque um policial lhe diz para fazer tal coisa. É preciso haver uma razão por trás da ordem, e no caso de Nathaniel Franklin, nenhuma tentativa de comunicação precedeu a ordem para parar. É compreensível que um homem negro fuja, ao ver a polícia chegar: ele sabe que, mesmo que não tenha cometido nenhum delito, pode terminar preso - ou morto. Portanto, fugir, neste caso, faz todo o sentido.

Em sua sentença, o juiz Parrish declarou que por falta de embasamento da denúncia anônima ao 911, ausência de comportamento criminoso pelo acusado, falta de motivo fundamentado para uma abordagem policial e revista conduzida sem qualquer tentativa prévia de comunicação com o suspeito, estava revertendo a sentença da primeira instância, em favor do réu.

Todas as acusações contra Nathaniel Franklin foram retiradas, menos claro, a de portar uma arma sem licença e estar de posse de um cigarro de maconha; ele pagou multa, e ficou quites com a lei.

[28-12-2019]