Os venenos de Próspero

A história dos tomates venenosos começou nos tempos coloniais na América. Acreditava-se que tomates traziam ácidos mortais no sangue. Em fins do século XVI, a maioria dos europeus temiam tanto os indígenas canibais, quanto os tomates americanos. Seu cultivo era apenas decorativo, pois era conhecida como a “maçã envenenada”. Os aristocratas europeus ficavam doentes e morriam sempre após ingerir tomates, mas o que ocorria era que somente os europeus mais ricos utilizavam pratos de estanho, que continham em sua composição altas concentrações de chumbo. Uma vez que os tomates eram ácidos, ao servi-los neste tipo de vasilha, desprendiam-se doses do metal que era ingerido junto com a fruta, o que produzia as mortes de envenenamento por chumbo. Como demoraram para relacionar os pratos de estanho com os envenenamentos por chumbo, o culpado das intoxicações foi mesmo para o tomate.

Virgílio Próspero estava acuado. Os cargos de confiança de autoridades federais sofreram mudanças depois que as correntes evangélico-militares assumiram os aparatos de repressão do poder central. À Frente da delegacia regional da Polícia Federal agora estava um coronel reformado do Exército, uma daquelas nomeações inacreditáveis, mas que agora era praxe num país de governo populista-autoritário. No presídio, pasmem, assumiu a direção um bispo, na verdade um pastor evangélico e ex-deputado federal, em busca de projeção.

Só que a crise nos estabelecimentos penitenciários era um veneno mortal para essa democracia gorda, lenta e moribunda. O poder judiciário faz do momento, a sua glória perante os poderes legislativo e executivo. Descarrega cada vez mais presidiários e a culpa de superlotação às outras autoridades constituídas. A população carcerária atingiu a cifra de oitocentos mil pessoas. Um em cada cem adultos deste país estava agora privado de liberdade ou sob uma tutela punitiva vigiada. O dobro nas ruas, aguardando ser preso ou vagas carcerárias. O veneno estava na corrente sanguínea.

O coronel cancelou os informes de Virgílio Próspero, achava-o perigoso: um ex-policial civil, um terrorista condenado e, além do mais, um antigo professor universitário, com acesso ao crime organizado. Um esquerdista, um fã confesso de Che Guevara e dos Cubanos. Tudo que o novo governo odiava. Optou por sua própria rede de informações, fora do presídio, numa inteligência da polícia, corrupta e vingativa, calcada em integrantes de milícias venais. O receituário carioca finalmente foi exportado para todo Brasil.

O diretor do presídio cancelou seus benefícios. Afinal, o sujeito era um inimigo de sua seita, um manipulador do "capeta". Conseguiu desbaratar as ramificações de Jim Jones no Brasil. É e sempre será um perigo para o meio evangélico. Fez o desafeto voltar rápido para a cela solitária. Mas o veneno se acumulava, sem enxergarem ou sentirem seus efeitos. Retiraram os tomates, mas não os pratos de estanho. O chumbo estava lá.

Os líderes do crime organizado, mais do que nunca, estavam atuantes. Os assaltos atrevidos se espalhavam pelo país. Em São Paulo, quase uma tonelada de barras de ouro foram roubadas com ousadia pelo PCC no Aeroporto de Guarulhos, às vistas de todo seu aparato de segurança. As fugas espetaculares de cadeias se alastraram. Os furos em dutos de combustíveis drenaram riquezas em Goiás, Minas, Rio e São Paulo para a informalidade. Os vazamentos de conversas privadas de juízes e procuradores trouxeram um golpe mortal na operação Lava-Jato: no seu bojo, o respaldo do crime organizado, suas técnicas presentes e pessoas que já prestaram serviços vitais, tal qual Virgílio Próspero.

Ele ainda mantinha a confiança do crime organizado, que concebeu e planejou o confronto entre facções rivais no Presídio Estadual de Altamira no Pará. Ao final do conflito se fez mais de seis dezenas de mortos. Escândalo de proporções hercúleas e que poderia ser evitado, os ânimos exacerbaram em todo país. Novas " Carandirus" estavam surgindo neste cenário caótico e agora imprevisível. Pudera, botaram Virgílio Próspero, para fora do esquema e o controle se perdeu.

As autoridades da Capital, o coronel e o bispo, atordoados, somente muito depois perceberam que o assunto entrou "na boca do povo" e em pauta nos jornais do mundo todo, somando a outras notícias avassaladoras à imagem brasileira no concerto das nações. O país da impunidade, também é o país da parcialidade judicial, o país da tortura, o país do vaza-jato, o país dos motins de presos, o país da destruição da Amazônia, o país dos agrotóxicos, o país de mais homicídios LGBT, o país da escravidão e o país do feminicídio. O veneno chegou ao órgão vital. O veneno matou o organismo. O organismo já é um morto-vivo.