Entre investigações
Era uma noite estranha que se avizinhava entre as varandas dos prédios. Luís olhava ao longe a movimentação com um ar que misturava ânimo com tédio, pois soubera da sua responsabilidade para com as labutas naquelas horas. Os casos não se resolveriam sozinhos, até porque eram a sua fonte de ganha-pão, então não poderia reclamar. Era aqueles casos de calar a boca, sossegar o estresse e fazer.
Como não era de ferro, abrira uma cerveja. Nem olhou o rótulo, apenas abriu “a mais gelada” e começou a ler os casos. Nessa hora, escuta a porta bater no hall de entrada, algo que não costumava atrair a atenção dos seus ouvidos, mas naquele momento sim. Talvez pelo ritmo cadenciado que os saltos faziam ao subir os lances de escada rumo ao terceiro andar, o mesmo em que se encontrava. Ali, na sala 315, ouvira batidas na porta, lá pelas 22h. Por uma fração de segundo, achara esquisito, mas então lembrara que somente uma pessoa teria tamanha “naturalidade” para adentrar o seu espaço assim, sem ser convidada…
- Então, é você Letícia? O que fazes por aqui? Está sem vinho?
- Boa noite pra você também, Luís. O que foi? Não gostou da
visita?
- Visitas numa noite estranha e fria como essa são inesperadas…
- E nem por isso, desagradáveis.
- Ok, você tem um argumento. Vai beber algo?
- Depende das minhas opções. O que tem por aí?
- E ainda vem exigente assim? Bem na geladeira, tem algumas
cervejas pelo que vi. Olha lá e te serve.
- Não tem vinho?
- Não tenho a menor ideia. Olha lá, vai que você é premiada…
- Realmente, o frio “realça” o seu humor…
- Não há muito humor nas escritas de quem trabalha na
madrugada…
- Olha só, sou uma mulher de sorte. Achei um Malbec
recém-aberto nos fundos. É nesse que eu vou!
- Deve ter sido deixado pelo Emílio. Aproveite que ele quase não
bebe.
- Não precisa dizer duas vezes.
Enquanto se deliciava com o leve degustar das taças de vinhos, Letícia olhava ao redor para aquele espaço que costumava frequentar nos últimos anos, mas que ultimamente andava meio distante. O trabalho e a casa nova, a primeira dos seus novos dias de solteira demandava toda a sua disposição. Talvez por isso, bebesse. Ou então pra ter uma nova visão da vida, do universo e tudo mais sem adentrar em entorpecentes pesados, até porque não era do seu feitio. A maturidade nos ensina a beber por diversão e bem-estar e não para cair até morrer, e, ninguém como ela para saber aproveitar dessas vantagens do tempo...
Então, pra quebrar o tédio e satisfazer a sua curiosidade dirigiu novamente a palavra a Luís para saber quais os casos que ele estava trabalhando naquela noite, afinal o trabalho de um investigador na madrugada costuma ser interessante…
- Quem é a bola da vez? Algum caso bacana?
- Hoje, tem alguns bem tediosos, mas um ou dois interessantes.
- É? Sobre o que versam os interessantes?
- Um deles é um caso de ordem de restrição, solicitado por parte
do marido, digo, ex-marido.
- E por que é interessante?
- Bem, ele e a mulher formavam um daqueles casais de comercial
de margarina: pai, mãe, filhos obedientes que ouvem calmamente
os pais no café da manhã...
- Tá, e aí?
- Tudo corria nos conformes, até o dia em que o marido começou a
receber cartas de uma de suas secretárias, falando inicialmente de
negócios e depois...
- Depois...
- Depois, foi entrando em outras temáticas e eles começaram a
fazer plantões toda semana de trabalho, o que gerou irritação por
parte da esposa.
- Até aí tudo normal não?
- Sim, mas as cartas que começaram com entrega de relatórios
passaram a trazer elogios à postura, ao desempenho, ao intelecto
dele...
- E a esposa não gostou?
- Detestou, começou a pressionar o marido pelo porquê de tantas
cartas, a ir ao seu escritório pelo menos umas duas vezes por
semana...
- Hmm... esquisito mesmo. Pensando como mulher, eu também
estranharia e conversaria com ele pra saber qual o sentimento que
guarda perante a sua funcionária. Por outro lado, ela me parece
apenas uma admiradora secreta, mas que saberei eu? Afinal, sou
somente uma tagarela...
- Foi o que o marido pensou, mas diante de um ciúme avassalador
da mulher, entrou com um pedido de divórcio. Todavia, ela não
encarrou bem, ficou desesperada dizendo que podiam se acertar...
- Entretanto, ele não quis?
- Não.
- Mas, ele chegou a ter algo com a secretária?
- Nada. Apenas trabalho, embora ela tentasse algumas investidas
mais ousadas após o seu pedido de divórcio...
- Oh, então era uma admiradora com “apetite”...
- Eu sinto que ele ainda gosta da mulher, mas o ciúme excessivo e
a desconfiança o fizeram repensar o caso...
- Mas, qual o porquê de você entrar nesse caso?
- Há 2 semanas, a secretária dele foi encontrada morta em casa
com um escrito na parede com os dizeres: “Morra piranha!” e uma
assinatura na parede com a sigla RPC.
- Hã? O que isso quer dizer?
- É a sigla do nome da ex-esposa dele. O ciúme dela e as suspeitas
do marido nos leva a questionar se não foi ela quem cometeu o
crime.
- E o que você descobriu até agora?
- Bem, encontrei mostras de DNA dela no local do crime, mas
filmagens da rodoviária apontam que ela estava viajando na noite
do crime.
- Hmm, interessante... Fiz bem em vir aqui então...
- Ah é espertinha, então se divirta analisando esse caso aqui.
- Eu? Mas eu nem sei como começar aqui...
- Bem, se não for ajudar, a porta está aberta para passagem, mas
eu tenho certeza que você vai gostar.
Nisso, Letícia entorna mais uma taça de vinho, franzi levemente as sobrancelhas em um olhar desafiador para Luís e pega um caso em mãos e diz: "Sabe, às vezes eu te odeio" – afirma ao puxar uma cadeira e começar a se debruçar no novo caso...
O Andarilho