Torture os números

Um suculento prato de peixe com batatas fritas, acompanhado de purê de ervilhas, foi colocado diante de Ellery Queen, que ajeitou o guardanapo sobre os joelhos. Preparava-se para atacar a refeição, quando o celular que havia deixado sobre a mesa do "pub", tocou. Garfo e faca nas mãos, olhou de canto de olho para a tela do aparelho: inspetor Highsmith, naturalmente. Deu um suspiro e pousou os apetrechos na borda do prato, levando o telefone ao ouvido.

- Algum problema, inspetor? - Indagou, sem disfarçar a contrariedade.

- Desculpe, sr. Queen... interrompi alguma coisa?

- Eu estava me preparando para almoçar, inspetor. Mas se resumir o motivo do seu contato, provavelmente a comida não terá tempo de esfriar.

Serviu-se de um gole da "ale", que havia comprado previamente no balcão, enquanto Highsmith falava.

- Normalmente, eu não pediria a sua intervenção neste caso, pois parece bem simples e ademais já está resolvido... ao menos do ponto de vista da Scotland Yard.

- Ótimo! Posso voltar ao meu almoço, então?

- Um momento, sr. Queen... ocorre que a pessoa que foi presa, sob a acusação de assassinatos em série, afirma que o conhece. E solicitou que provasse sua inocência!

- Eu conheço um assassino serial? - Indagou Queen, incrédulo.

- Assassina; a enfermeira Sia Parker.

- Sia Parker... - Queen pousou o copo na mesa e começou a tamborilar na mesma. - Do St. Thomas' Hospital?

- Essa mesma - anuiu Highsmith.

- Mas a enfermeira Parker é uma pessoa gentilíssima... - recordou o detetive. - Lembro bem dela, como me atendeu com atenção e presteza no caso da "festa da espuma". Que acusações pesam sobre ela?

- Eutanásia. Teria morto pelo menos seis bebês na UTI neonatal, no espaço de um ano. Isso foi antes do caso do Flamingo Club.

- Há alguma coisa errada nessa história... vou passar pelo seu gabinete para examinar os arquivos do caso. Assim que terminar de almoçar.

- Bom apetite - respondeu diplomaticamente Highsmith.

* * *

Sentado em frente à escrivaninha do inspetor, na Scotland Yard, Queen repassou a documentação que lhe fora fornecida.

- Como então, o hospital suspeitou que mortes na UTI neonatal, aparentemente sem relação, estavam vinculados aos turnos da enfermeira Parker?

- Precisamente. Foi feita uma sindicância interna, e descartada a hipótese de mera coincidência entre as mortes e a presença da enfermeira, nos turnos onde ocorreram as mortes do bebês prematuros.

- Certo, mas... se as mortes não ocorreram por causas naturais, como a srta. Parker as teria provocado?

- Segundo o hospital, por envenenamento por digoxina... um medicamento utilizado para tratamento de problemas de coração. Para chegar à esta conclusão, os bebês foram autopsiados e constataram níveis de digoxina no sangue superiores a 1.000 vezes aos limites terapêuticos.

Queen ergueu os sobrolhos.

- Digoxina?

- Sim. Está no resultado da sindicância do hospital, assinada por especialistas de renome.

- Não estou questionando a análise dos especialistas, nem os níveis verificados, mas acabei de me lembrar de um fato importante... posso acessar a internet do seu computador?

- Naturalmente - replicou Highsmith.

* * *

E na coletiva de imprensa, concedida pela Scotland Yard uma semana depois da entrada de Ellery Queen no caso Sia Parker, o inspetor Highsmith declarou estar convencido da inocência da acusada, ainda mantida sob custódia da justiça inglesa.

- O detetive Ellery Queen, que aqui está presente, ao examinar o relatório da comissão de sindicância do St. Thomas' Hospital, concluiu que a única evidência de conduta criminal por parte da ré, eram os altos índices de digoxina verificados nas autópsias dos prematuros. Por serem prematuros, era de se esperar uma taxa de mortalidade mais alta entre os pacientes da UTI neonatal. Tudo o mais, eram coincidências.

- Mas como justicar os níveis elevados de digoxina sem descartar a hipótese de envenenamento? - Indagou uma jornalista do "The Times".

- O sr. Queen recordou-se de que a questão de altas taxas de digoxina em autópsias já havia sido discutida pelo "Canadian Nurse Journal"... em 1993 - explicou Highsmith. - Bastou uma consulta à internet para confirmar isso. Ocorre que, embora estes índices possam ser extremamente elevados, isso ocorre por causas perfeitamente naturais: as células do coração extraem digoxina do sangue e a concentram, e quando o paciente morre, toda a substância é liberada imediatamente no coração e nos grandes vasos adjacentes. Coincidentemente, estes são precisamente os locais de onde os médicos legistas extraem amostras de sangue para análise. Não foi má-fé; simplesmente interpretaram de forma errônea resultados que deveriam ser encarados com precaução.

- Crê que esta avaliação será suficiente para libertar Sia Parker? - Questionou outro repórter.

- Já que toda a acusação repousa unicamente sobre a hipótese do envenenamento por digoxina, não tendo sido levantada qualquer outra causa para as mortes em questão, creio que o Ministério Público irá retirar as acusações sobre a ré - concluiu o inspetor.

E ao fim da coletiva, enquanto repórteres e cinegrafistas se retiravam do salão de conferências, Queen virou-se para Highsmith e declarou:

- Você está me devendo um almoço.

- Pagarei com muito prazer - declarou o inspetor, sorridente. - Peixe com batatas fritas, e cerveja?

Queen balançou a cabeça negativamente.

- Lagosta e vinho branco. Peixe com fritas e cerveja, eu como sozinho...

[12-04-2019]