Estudo de personagem

[Continuação de "A filha do ourives"]

- Estudo de personagem? - Indagou intrigado Jukel Shylton.

À sua frente, na mesa duma taverna próxima ao teatro Sadler's Wells em Londres, o ator Godwin Holsey balançou afirmativamente a cabeça.

- Como quer que eu interprete este nobre, se não o conheço pessoalmente?

- Ah, sim... entendi agora o conceito - retrucou Shylton, tomando um gole de vinho português. De fato, eu vim mesmo hoje à sua procura para convidá-lo a conhecer o nosso alvo, ver de perto como ele fala, se movimenta e interage com aqueles que estão à sua volta.

- Isto que acabou de descrever é um estudo de personagem... - condescendeu Holsey, enchendo seu copo de vinho.

- Pois então estamos falando o mesmo idioma - acedeu o guarda-livros. - Teria tempo livre neste fim de semana para ir à Newmarket?

- Newmarket... - Holsey ergueu os olhos para o teto de vigas escurecidas da taverna. - Não é exatamente perto.

- Há um serviço regular de diligência para lá - redarguiu Shylton. - Só vai lhe tomar umas poucas horas. Basta chegar, interagir um pouco com o lorde, ficar próximo dele pelo tempo que achar conveniente, e voltar para Londres no dia seguinte. Suponho que tenha um substituto para desempenhar seu papel na peça, caso precise ausentar-se por uma noite.

Holsey lançou um olhar perscrutador para Shylton, copo na mão.

- Não há outro lugar, aqui mesmo em Londres, onde eu possa me aproximar desse seu lorde?

O guarda-livros passou a mão pelos cabelos ralos.

- Lamento, mas atualmente ele só costuma vir à Londres para algumas sessões no Parlamento. E os locais que costuma frequentar na cidade não são abertos para alguém da sua, digamos... categoria social.

Holsey balançou a cabeça, em silêncio.

- Percebo - declarou enfim. - E o que o seu lorde vai fazer em Newmarket?

- O que os nobres costumam fazer lá - replicou Shylton, bebendo o restante do seu copo de vinho. - Corridas de cavalo.

* * *

Manhã de sol, Holsey desceu da diligência em Newmarket na frente da hospedaria King's Horses, onde passaria a noite. Vestido como um burguês de recursos, o cabelo castanho preso por uma fita preta num rabo de cavalo, registrou-se sob o nome de Barnaby Stoke, comerciante de açúcar em Wapping, Londres.

- Trouxe bagagem, senhor? - Indagou o atendente que o recebeu na chegada.

- Apenas uma valise de mão; vou passar somente a noite - informou, de modo vago.

Depois de deixar a valise com sua muda de roupa no quarto, alugou um cavalo numa estrebaria na entrada do vilarejo e pediu informações sobre como chegar ao local onde eram realizadas as corridas.

- Não há como errar, cavalheiro - garantiu-lhe um cavalariço, apontando o caminho. - Siga reto por esta estrada e verá os pavilhões dos organizadores, à cerca de uma milha de distância.

Não foi difícil. Apreciou o verde do campo inglês à sua volta e logo chegou ao local onde erguiam-se as grandes tendas dos proprietários de cavalos de corridas, homens de posses todos eles. Em meio às tendas, circulavam cavalariços conduzindo animais, cavaleiros e donos de haras. Avistou o pavilhão sobre o qual tremulava a bandeira com o brasão de armas de Lorde Eldysley, e conduziu o cavalo para lá. Próximo à construção, avistou a figura vestida de negro de Jukel Shylton, aguardando sua chegada como haviam combinado.

- Senhor Stoke! - Saudou-o, erguendo o tricórnio em saudação.

- Senhor Shylton! - Replicou o ator, retribuindo o gesto. Em seguida, apeou, e um cavalariço requisitado por Shylton levou o cavalo de aluguel para uma estrebaria.

- Eu vou conduzi-lo até Lorde Eldysley - informou o guarda-livros. - Ele está ciente da sua chegada.

E,em voz baixa:

- Acredita que vai conseguir fazer o seu estudo de personagem nestas condições?

Holsey deu de ombros.

- Senhor Shylton... não creio que terei que ser tão fiel ao personagem a ponto de enganar Lady Eldysley sob os lençóis!

O nobre estava sentado à uma mesa ao ar livre, sob um toldo, lendo o que parecia ser uma carta com uma lupa de cabo de chifre. Usava veste e sobreveste azul, adamascada, com um "cravat" de renda branca ao pescoço. Sobre a cabeça, uma imponente peruca branca.

Fora as roupas, avaliou Holsey, estava claro porque Shylton o escolhera para emular o nobre: ambos possuíam certa semelhança física. Além, é claro, do seu talento natural para representar, acrescentou.

- Milorde, com sua licença... - disse Shylton respeitosamente ao aproximar-se da mesa. - Está aqui para vê-lo o mercador Stoke, de Londres.

Lorde Eldysley depositou a lupa sobre a mesa, guardou o documento num bolso da sobreveste e encarou o ator com curiosidade. Ergueu-se, ajustando o "cravat" num gesto maquinal.

- Senhor Stoke... é pontual!

- Milorde - redarguiu Holsey, inclinando a cabeça numa meia reverência.

- Então tem interesse em investir em puros-sangues? - Inquiriu o nobre. - Possui alguma prática no esporte?

- Não na verdade, milorde. Mas fiz contato com seu guarda-livros, o senhor Shylton, e ele me informou que poderia me recomendar alguns animais para formar um plantel.

- Sim, de fato - redarguiu Lorde Eldysley, dando alguns passos com as mãos atrás das costas. - Dependendo das suas finanças, naturalmente... mas poderei lhe indicar alguns animais de minha propriedade com bom potencial para corridas de curta e média distância.

- Estou ansioso para vê-los - declarou o ator.

- Pois então, venha comigo - redarguiu o nobre de modo amigável, passando por ele e seguindo caminho.

E sob o olhar atento de Jukel Shylton, Holsey partiu no encalço de Lorde Eldysley, rumo às estrebarias.

[Continua em "O plantel"]

- [05-03-2019]