Vita brevis, ars longa

Quando a secretária entrou na biblioteca do palacete e anunciou que dois policiais fardados da Polícia Metropolitana haviam chegado para levá-lo à Scotland Yard, Bertalan Pataki soube que sua hora havia chegado.

- Vão me deportar - anunciou, em desespero, erguendo-se da poltrona de couro onde estivera sentado.

- Pode ser só uma averiguação de rotina... - minimizou a secretária, tentando parecer mais confiante do que realmente se sentia.

- É a ordem de deportação - insistiu Pataki. - Escute: peça a eles que me dêem quinze minutos, estou ainda de roupão... não deveriam prender alguém antes do café da manhã!

- Vou pedir um tempo para que troque de roupa - aduziu ela.

- Isso. Faça isso. Quero, ao menos, ser preso de modo apresentável.

- Fique calmo... eu vou falar com eles. Vá se arrumar - concluiu a secretária, saindo da biblioteca.

Não havia como fugir, reconheceu Pataki; estava no segundo andar do palacete, e certamente havia outros policiais lá fora, além dos dois que aguardavam no térreo. Dirigiu-se ao seu quarto e colocou um elegante terno de tweed cinza. Em seguida, abriu uma gaveta da cômoda e dela retirou um revólver Smith & Wesson .38.

- Nunca pensei que iria usar isso algum dia... - murmurou, sopesando a arma.

Instantes depois, os dois policiais e a secretária no térreo, ouviram um estampido. Ao correrem para o andar superior, depararam-se com Bertalan Pataki caído ao chão, em meio a uma poça de sangue: havia disparado contra o próprio coração.

* * *

- O caso está encerrado, sr. Queen - informou o inspetor Highsmith pelo telefone. - Infelizmente, não conseguimos capturar Pataki vivo.

- Trágico! - Exclamou o detetive novaiorquino ao saber dos detalhes do suicídio. - Ele preferiu a morte à ser deportado para a Hungria...

- Não sei se posso condená-lo... - ponderou Highsmith. - Pataki enganou muita gente importante em seu país natal, vários deles figurões ligados à máfias e coisas assim. É possível que não durasse muito, se caísse numa prisão húngara. E, provavelmente, sofreria uma morte dolorosa...

- Sim, tem razão - acedeu Queen. - Nestas circunstâncias, a morte auto-infligida quase me parece misericordiosa...

E, lembrando-se do que o colocara no caso Pataki, em primeiro lugar:

- E o quadro?

- Está sendo examinada pelos especialistas da National Gallery, mas não tenho dúvidas de que trata-se de uma falsificação. O resultado deve ser divulgado em poucos dias.

- Pataki foi um dos maiores falsificadores em atividade na Europa do pós-guerra - comentou Ellery Queen. - Mesmo utilizando nomes falsos e estando fora de circulação há muitos anos, não tive dificuldade em reconhecer seu estilo audacioso quando vi o anúncio do leilão do "Apedrejamento de Estevão" pela Sotheby's. Era algo que, eu bem o sabia, somente um mestre da fraude como Pataki teria o descaramento de fazer.

- Como desconfiou que fosse ele, especificamente? - Indagou Highsmith, curioso.

- Pataki especializou-se em falsificar pintores holandeses dos séculos XV e XVI, - explicou didaticamente Queen - que, embora dessem muito mais trabalho para produzir, proporcionavam lucros maiores do que pintores contemporâneos. Não eram somente os húngaros que estavam no seu encalço... enganou muitos dos meus conterrâneos, que adorariam poder botar as mãos nele. Eu mesmo fui sua vítima.

- O senhor? - Questionou Highmsmith, intrigado.

- Sim, eu mesmo - reconheceu Queen. - Eu era jovem, estava pela primeira vez em Paris... comprei um desenho das mãos de Pataki... que se apresentou usando um nome falso qualquer... e que me foi vendido como um autêntico Picasso, de quem o farsante disse ter sido amigo na época da guerra!

O inspetor não conteve uma risada.

- Desculpe, senhor Queen... mas é difícil imaginá-lo sendo enganado...

- Pode rir - condescendeu Queen. - Hoje, isso seria quase impossível de acontecer... aprendi muito sobre História da Arte, desde então.

- A vida de crimes de Bertalan Pataki terminou - sentenciou Highsmith.

* * *

Ellery Queen foi chamado por Highsmith ao laboratório da National Gallery, em Londres, onde também o aguardava uma das especialistas, a restauradora Lucy Osmond. Ela queria falar com ambos sobre o resultado da análise do quadro, que havia sido apresentado por Pataki para leilão pela prestigiosa casa Sotheby's.

- Confesso que fiquei impressionada com a obra - admitiu ela. - O fato de ser uma pintura atribuída à Hieronymus Bosch, e não de autoria confirmada dele, ainda assim poderia chegar facilmente a casa das 250 mil libras num leilão.

Highsmith ergueu as sobrancelhas, admirado.

- Bem, mais... o quadro é uma falsificação, não é?

- Sim - acedeu Lucy. - Mas isso só foi confirmado por espectrografia de infravermelho... tivemos trabalho para reconhecer que se tratava de uma fraude.

- E quanto ao suporte? - Questionou Queen.

- Pataki usou o suporte correto para o período... um painel de carvalho do Báltico. Fizemos a análise por dendrocronologia, e a idade da madeira está - grosso modo - dentro das últimas décadas de vida de Bosch. Se fosse apenas por isso, até poderíamos dar o benefício da dúvida quanto a autenticidade do quadro...

- Mas a espectrografia o desmascarou - ponderou Queen.

- Isso. E também o filtro infravermelho; foi aí que a coisa ficou interessante - comentou Lucy, exibindo uma foto impressa, em preto e branco, onde se via uma imagem borrada do quadro em análise. Highsmith a analisou, testa franzida.

- Isto não parece com o quadro de Pataki... é um esboço?

- É o que estava por baixo da pintura de Pataki, o suposto "Apedrejamento de Estevão", de Bosch. É um esboço da Madona com o Menino, e está assinado... por Jacobus Traiectensis - declarou suavemente Osmond.

- Quem é esse? - Indagou Highsmith.

- Jacob van Utrecht... um pintor contemporâneo de Bosh. Não tão famoso quanto ele, mas com poucas obras sobreviventes reconhecidas - explicou Queen, examinando a foto borrada. - Deve valer uma soma expressiva...

- O quadro irá para restauração - acrescentou Osmond. - Vamos tentar recuperar o que for possível desse Jacobus Traiectensis.

- Não entendo... - ponderou o inspetor. - Pataki fez uma pintura falsa sobre um quadro antigo, verdadeiro?

- Pataki não sabia que esse Jacobus Traiectensis estava aí - aduziu a restauradora. - Alguém, séculos atrás, decidiu reaproveitar o painel para uma pintura qualquer, anônima, e deve ter sido nessa condição que Pataki a comprou, apenas porque o substrato era condizente com a época da suposta obra de Bosch.

- Ele nunca soube que estava com um bilhete de loteria premiado em mãos - filosofou Queen. - Triste fim para um falsário... ludibriado pela verdade!

- [26-05-2018]