Porcelana

Era uma noite fria, a neblina cobria os pneus da limusine, de espessura tão densa que quase penetrava sua blindagem. Medeiros estava impaciente, nunca imaginara que teria de se reunir pessoalmente com todos da região. Seria a primeira vez que todos finalmente veriam o rosto por trás dos grandes acordos entre gangues, proprietários de lojas e, até mesmo do governo. Tais acordos haviam mantido a paz por longos anos.

Quase todas as famílias já estavam no Parma Pizza. Seu capanga mais fiel, chamado apenas pelo nome de Geovane, estava à espera de Medeiros, atento como um soldado das ruas preparado para qualquer sinal que poderia representar perigo para seu chefe. A limusine chegou ao ponto de encontro, Medeiros não queria estar ali, mas era necessário. Expressava seu desgosto por aquele local, porém ao abrirem a porta do carro, abriram também o grande poder de atuação de Medeiros, expressando, para seus capangas que lhe acolhiam, um olhar de serenidade e tranquilidade, mesmo em meio ao caos interno que lhe consumia.

A família Vieira foi a última a entrar na sala, mas ainda assim antes de começar a reunião, pois Medeiros estava se preparando para entrar. Era um alvoroço, todos estavam desconfiados uns dos outros, a paz que antes existia entre as gangues de elite e as gangues de rua parecia não existir mais. Era peculiar de se observar, havia famílias e gangues muito distintas uma das outras, não era à toa que era difícil de manter a paz entre elas. Para cada família existia outra com pensamentos contrários, por exemplo, a família Mazon era a que mais gritava, pois havia perdido milhões com a descoberta de todos os sobrenomes dos envolvidos na sociedade secreta da cidade. Enquanto a família Pauli se mantinha quieta e serena, pois sabia que de alguma forma recuperaria todo o dinheiro perdido em menos de uma ou duas encomendas dos seus mais diferenciados produtos de astronomia, contrabandeados no mercado negro científico. E, se descobrissem a identidade de algum membro da família, seria natural que todos entrassem em um acordo para voltar para Alemanha, pois sentiam saudade de suas origens.

Uns estavam prestes a sacarem suas armas, quando, finalmente, com um gongo de ringue, soou o sino de canto de porta da pizzaria, deixando todos estatizados perante a presença daquele homem que todos na sala admiravam. Pequeno, se comparado aos demais, porém, tinha em sua postura traços militares, que o engrandecia e, de certa forma, tornava até seu jeito de andar superior.

Medeiros estava furioso, alguém havia vazado informações confidenciais das famílias do submundo do crime e dos negócios. O próprio Parma era fruto do poder aquisitivo de Medeiros, que fez questão de pagar ao proprietário dinheiro suficiente para que não fechasse a pizzaria e, em troca, meu chefe deveria fechar a pizzaria uma vez por semana para que Medeiros pudesse comer aqui sem ser visto. Achava curioso que meu chefe sempre ligava para alguém todos os dias algumas horas depois de Medeiros sair, não fazia ideia do porquê. Desde então, o admiro, pois o Parma é o único local que me acolheu depois de eu ter fugido da casa do bêbado de meu pai. E Medeiros me ajudou a ser independente, mesmo que indiretamente, por isso busco saber, sempre que possível, seus passos e, com isso, comecei a estudar o seu mundo, tudo que havia por trás da polícia, do governo, do caos organizado, do sangue derramado daqueles que mereciam morrer. Amava a maneira da organização, de como suas mãos eram sujas, mas, mesmo assim, as pessoas faziam questão de beijá-las. Eu quero ser assim, não sou apenas um simples garçom!

E aqui estava ele, de frente para mim, de uma maneira diferente da casual. Eu não podia nem olhar em seu rosto. Eu não deveria estar fazendo essas observações, nem mesmo ter olhado pela fresta da porta da cozinha, mas sou fascinado pelo trabalho do submundo, eles conseguem ser mais influentes do que o próprio governo. São estrategistas e empresários, mesmo que às vezes com pouca escolaridade. Matam sem medo, fazem o que deve ser feito, punem aqueles que provocam sua ira! Sempre quis ser alguém assim. Eu sabia que, se houvesse uma oportunidade, aquela era a hora de mostrar do que sou capaz.

Nunca havia visto todos tão quietos, o assunto era mesmo muito sério. Medeiros mandou que todos sentassem na grande mesa que o patrão arrumou no meio da pizzaria e, com sua voz firme, falou:

- Quem desta sala é o traidor?

Todos começaram a se entreolhar, algumas famílias que tinham rixas umas com as outras estavam prestes a acusar sem provas a adversária, quando Medeiros retomou a palavra:

- Ora, pois apenas nós sabemos nossos sobrenomes e alguns assuntos confidenciais. Como escapariam informações sem conhecimento de alguém daqui de dentro? Da polícia? Poupe-me, a polícia de Palhoça City está há anos luz atrás da gente, além de eu ser dono de 90% das delegacias da cidade, bastava um estalar de dedos que algum policial faria o que eu mando. Então, pergunto novamente e pela última vez: quem é o traidor?!

O patrão mandou que eu pegasse a xícara de Medeiros para que lhe colocasse café. Medeiros sempre foi muito desconfiado, nunca tomava nada sem ser pela xícara de cerâmica que parecia ser do século passado. Há também os boatos de que aquela era a xícara onde sua mãe tomava chá todos os dias antes de ser brutalmente assassinada quando Medeiros era apenas uma criança de colo. Mas a história nunca se confirmou, pois o único que sabia de sua real história era Geovane.

Meus companheiros de trabalho me achavam louco, eu finalmente poderia ver o rosto de todas as pessoas de perto, e não apenas por uma janela de porta de cozinha. Peguei a xícara de porcelana, tão frágil e tão bela, coloquei nela o café mais bem preparado que todos ali haviam feito na vida, caso contrário, éramos homens mortos.

Abri a porta da cozinha com uma leve empurrada com o pé, comigo carregava uma bandeja de prata na mão esquerda, apenas para que a xícara ficasse apoiada sobre ela. Em meu braço esquerdo, como de tradição, estava uma toalha branca para caso houvesse algum imprevisto. Medeiros estava de pé, com um canivete na mão. Suponho que mataria alguém da família Borges, pois segundos antes de o café ficar pronto, eu o ouvi falando sobre índices de cargas e de documentações vazadas e, pelo que parece, a família Borges não apenas foi a única a não ter déficit em seus carregamentos de álcool, como teve uma alta significativa no número de exportações. Pois a concorrência, família Rossi, foi exposta na internet, perdendo credibilidade no mercado negro. Mas, com minha chegada importuna na mesa, interrompi o ato. Neste momento, eu já estava sentindo aquele canivete penetrando minhas cordas vocais e estraçalhando o resto que sobrasse do meu pescoço, mas, para minha surpresa, Medeiros ao me ver, expressou um sorriso de canto de rosto e disse:

- Vejam, eu era como esse garoto. Jovem, fraco, frágil, sem ninguém para me ajudar em nada! E sabem como eu consegui tudo que tenho hoje? Foi através da minha família e, quando digo família, não digo apenas a família Medeiros, abranjo todos nós, a família da rua. Esse garoto tem o sangue palhocense correndo por suas veias, e é nosso dever como uma família nos manter de pé, para que garotos assim tenham a oportunidade que nós também tivemos um dia!

Eu me assustei. Tudo que eu conseguia pensar no momento era sobre as palavras que ele lançava para todos que estavam na mesa.

Chamar-me de frágil? Fraco?! Nem palhocense sou! Neste momento senti uma revolta consumir minha alma, lembrou-me dos insultos que meu pai direcionava a mim, dizendo que eu nunca seria um homem de respeito, que eu era... Fraco! Hipócritas! Como se eles me conhecessem de verdade! Eu não sou fraco!

Perceber que meu ídolo e meu pai me viam da mesma forma me deixou num estado de reflexão durante todos aqueles minutos que eu fiquei ali parado, todas as loucuras que nunca imaginei fazer com meu pai me passaram pela cabeça, desta vez eu não podia simplesmente fugir! Juro por Deus que minha imaginação fluiu de uma maneira tão real que eu pude sentir os cacos de porcelana da xícara rasgando o pescoço do cretino!

Mas nada fiz, talvez eu seja mesmo um fraco.

Logo após eu sair do local com mil coisas em minha cabeça, aquele café que lhe entreguei com 205 ºF foi lançado sobre o mapa da cidade, respingando sobre o braço dos que estavam sentados na frente da mesa, causando pequenas queimaduras. Aquele gesto expressava o quão chateado estava com as famílias da região de Palhoça City e o quão desequilibrado estava. Haviam o traído, trabalho profissional, cujo ninguém havia feito antes, sem rastros. Ele não sabia o que fazer, estava com medo!

A reunião já durava horas, na televisão só passavam matérias referentes ao escândalo. Isso o irritou, fez sinal para que seus capangas se aproximassem da mesa no centro, aquele sinal poderia significar o início de uma guerra que reduziria a cidade ao caos, isso seria... Mágico... Mas, infelizmente, não era o que ninguém dali queria. Todos sempre prezaram pelo bem da cidade, mas uma era de crise havia começado, e de uma coisa sabia Medeiros, identidade secreta nunca mais.

Passaram-se alguns minutos inquietos, Medeiros havia feito uma pausa em seus longos discursos cansativos de como eles eram importantes para a cidade, e do quão grande foi o erro que cometeram ao expor... O celular tocou, seu capanga atendeu, pareciam ter descoberto algo... Num gesto de fúria, Medeiros pegou o fuzil de um de seus capangas e mandou que todos nós empregados fôssemos para o centro do salão e pediu para que meu chefe desse um passo a frente. Ele estava tremendo como um patético, depois eu que sou o frágil...

Mal tive tempo de piscar, Medeiros atirou em meu chefe em questão de menos de um segundo o sangue do cretino sujou toda a minha camiseta. Não senti medo, nem me mexi, na verdade aproveitei a sensação de sentir o sangue correndo pelo meu rosto, era como se fossem as lágrimas que eu derramava quando era criança, eu me sentia vivo novamente. Mas parece que os outros ficaram estagnados, engraçado. Nunca gostei de meu chefe, mesmo que ele tenha me acolhido aqui no Parma, ele me tratava como escravo, eu trabalhava apenas para ter onde morar e comia do resto do que sobrava das pizzas que eu recolhia. Foi uma experiência e tanto.

Medeiros riu, ele olhou para mim como se soubesse que eu não gostava de meu chefe, como se soubesse do ódio que eu sentia por aquele lugar, como se soubesse que naquele momento tudo que eu sentia era inveja dele por portar aquela arma capaz de saciar todos os meus desejos de justiça. Eu estava amando tudo aquilo.

O capanga explicou em voz alta enquanto Medeiros, pela primeira vez na madrugada, estava se dirigindo a uma cadeira. Meu chefe havia traído todos. Mesmo Medeiros tendo pagado todos os agiotas e subornado a prefeitura para que a pizzaria ficasse de pé, a ambição do desgraçado era maior, ele estava servindo como informante para um grupo de hackers altamente treinados por uma organização secreta conhecida como SENAI. Havia colocado grampos de sinal de internet e telefone espalhados pelo estabelecimento, com ajuda profissional e tudo feito às escuras, de noite, para que não houvesse interrupções.

Meu chefe não era tão burro quanto eu pensava. Regra número um desse tipo de negócio: não se subestima ninguém.

Mesmo com a morte de meu chefe, estavam todos queimados com seus compradores, Palhoça City dali por diante entraria em instabilidade econômica e política muito grande, e deixaria de ser uma potência a nível federal. Aquela reunião não adiantaria de nada, estava tudo acabado dali para frente.

Medeiros mandou que trancassem meus amigos dentro da cozinha, ele queria falar comigo. E estou aqui, escrevendo o que talvez seja meu leito de morte. No meio da confusão, consegui pegar a tão amada xícara de porcelana de Medeiros. Como não sou bobo, conheço de cabo a rabo todos os centímetros desta espelunca, caso algo dê errado, tentarei escapar pelos fundos levando comigo esta xícara, que me parece ter um grande valor. Medeiros planeja fugir desta cidade que está fadada ao fracasso econômico, creio que todos irão se afastar daqui, e apenas as gangues de rua restarão. Esperarei a decadência desta cidade e, logo após, poderei vender esta xícara e seguir minha vida. Imagino eu, me tornando alguém rico, um Sr. Dörner! E, quem sabe, uma nova família surja para pôr em ordem novamente o caos de Palhoça.

Gabriel Vieira
Enviado por Gabriel Vieira em 02/08/2016
Reeditado em 06/08/2016
Código do texto: T5716819
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