Respeitem a minha natureza
As portas do elevador fecham-se suavemente ás minhas costas . Abelardo empurra a cadeira de rodas , na calma ancestral do sol a sol na palha da cana .Finge esforçar – se, os mecanismos da cadeira exigem um mínimo de força física . Afinal , sou um sequelado grave e rico , atestou – me a primeira condição um primo neurologista , logo após uma isquemia cerebral passar – me uma rasteira . Encosta a cadeira no lugar costumeiro ,rente á murada do mezanino - somos , os velhos, criaturas de hábitos – contemplo a imensidão verde do parque , cuja construção engoliu entre outros ,o casarão dos meus antepassados , com as melhores lembranças de minha vida , risos e sensações de um glorioso passado .
Aparentemente ,sou um inválido . Fico ali , todas as tardes , pegando um sol fugidio e semi - crepuscular . Com o passar dos anos ,atingi a mais completa invisibilidade social, mimetizei o concreto ao meu redor , tal aquelas borboletas , assumindo a cor dos troncos das árvores e enganando seus predadores .Esta é a minha natureza. Debaixo daquele verde , daquelas flores , estão minhas raízes , meu passado e meu futuro.Então, exijo e imponho respeito á minha maneira de velho espartano entre ilotas imbecilizados. Minha mente e meus braços , continuam ativos , mas disso ninguém precisa saber, além de mim e do Abelardo .
Por que não fingiria para viver no meu pesadelo com ar refrigerado ,no serpentário familiar do meu filho ? Abigail , minha velha, foi embora ainda no esplendor da velha mansão . Sorte ? Até para morrer tem de ter,dizem os mais antigos . Aqui estou , sobrevivendo á barbárie e defendendo o meu verde e meus mortos .
Abelardo deixa – me aqui á vontade . Faz o que bem quer e entende , bolina as empregadinhas no elevador na minha frente , dá voltas com elas no parque , empurrando carrinhos de bebê. Sempre o sorriso de marfim , aberto no rosto retinto e nojento . Hoje terei trabalho: um casalzinho faz amor , em pé , sob a jaqueira centenária , quase á minha frente .Olho ao meu redor: sozinho. Debaixo das pernas atróficas e cobertas pela manta , puxo o rifle automático , com silenciador e mira telescópica : um tiro em cada cabeça ; caem um sobre o outro , um bucólico final para Romeu e Julieta . Guardo a arma e aplaudo entre lágrimas de entusiasmo juvenil , o meu próprio trabalho . Quem não aplaudiria uma obra de arte ?