Muerte

Cigarro. Não sei o porque continuo envenenando minhas veias com esta porcaria, mas já tentei parar umas cinco vezes e nunca consegui ficar mais que um mês. Quando termino amasso a bituca no chão e dou uma última respirada de ar puro. Entro na cena do crime.

O prédio abandonado está todo cercado pela famosa faixa amarela de contenção, passo por debaixo de uma e meu fôlego já quer desistir de mim. Não sou mais o jovem investigador que eu era. Quarenta e oito anos, três filhos, dois divórcios e quatro tiros, uma das balas ainda habita meu tórax doendo toda vez que espirro.

— Hugo?

Olho para trás e me deparo com o prefeito. Neste exato momento descubro que o crime chamou a atenção de pessoas importante.

— Bom dia senhor William, a que devo a honra de vê-lo pela manhã? — alfineto o prefeito que tem a fama de nunca conseguir acordar cedo ou cumprir horários.

— Corte o papo furado Hugo, odeio ser acordado por causa de uma barbaridade destas, e pior, uma barbaridade com alguém do meu gabinete.

Coço o queixo e sinto a barba por fazer do dia anterior. Alguém do gabinete, repito comigo. Sigo até o burburinho, afasto a multidão de policiais e consigo ver a vítima. Trata-se de Laura secretária do prefeito. Uma verdadeira beldade ensanguentada e lívida. Calço as luvas de latex e afasto o terninho que veste a vítima. Um dos seios da moça aparece enquanto observo a ferida em seu colo, reparo em um policial atrás de mim com um sorriso malicioso olhando para a nudez da moça, solto um olhar reprovador e me movo na frente do corpo.

Há um ferimento circular no colo, porém não é profundo o bastante para ter sido fatal, a causa da morte é outra. Não há sinal de outro ferimento visível. Olho de soslaio o assistente legista chegando com a carriola. Fecho o terno da moça e dou espaço para levarem o cadáver.

— Dr. Bruno Gonzales, autópsia de Laura Ribeiro de Souza.

Desligo o gravador. Mesmo depois de tantos anos de profissão como legista, ainda me choco quando em minha mesa de trabalho há uma jovem, ainda mais tão bonita quanto essa. Recebi o corpo com prioridade, pois tratava da secretária do prefeito.

Sem marcas defensivas, e demais cortes, exceto por um no colo, medindo a profundidade constato que não há nem 5 milímetros dentro da pele. Nem desconfio qual seja o motivo do corte. Pego o bisturi e antes de me aproximar admiro sua pele, apesar da palidez ela ainda parece viva, como se tivesse apenas dormindo.

Passo a lâmina formando um “Y” no tórax da moça, abro a pele e estaco. Os órgãos estão estranhos, passo os dedos como se acariciasse sua caixa torácica, encontro uma entrada e enfio meu dedo alcançando o coração. Ele bate. Uma gota de suor gelado toma conta de mim enquanto pego um tubo de ensaio e aproximo o vidro para perto do nariz da moça. Ela ainda respira. Seus batimentos e sua respiração estão fracos, mas ela ainda está viva!

Acordo com a sensação de que um caminhão tivesse passado por cima de mim. Não sei bem o que aconteceu comigo, em um momento eu estava contando dinheiro e no outro estou neste hospital. Quando abri os olhos pela primeira vez me perguntaram o meu nome, falei: “Laura”. Desde então uma horda de médicos me examinam e falam pouco do porque estou aqui.

Sinto uma dor lancinante, como se tivessem me enfiado uma faca em meu peito. Estremeço toda e por fim crio coragem de abrir meu avental. Há um corte enorme em meu peito, sinto vertigem e desmaio.

Dou um murro na mesa. As canetas pulam e acabam caindo no chão. Minha vontade é de chutar tudo em minha volta, mas não posso. Como eu não percebi que Laura estava viva? Fiquei tão concentrado no ferimento do colo que não prestei atenção ao básico. Tenho o exame toxicológico em mãos, após uma rápida leitura constato o uso de um veneno que induz a pessoa a algo semelhante ao coma, porém com os batimentos cardíacos tão leves que quase ficam imperceptíveis.

Excelente.

Sei tudo sobre o veneno, porém nada sobre o assassino. Desse jeito fica difícil efetuar uma pris... O telefone toca. Atendo e ouço atentamente a voz do outro lado, sem dizer nada coloco o fone no gancho e fico um tempo com a boca aberta, pego as chaves e rumo ao necrotério.

Bruno me espera do lado de fora fumando um cigarro, quando me vê joga a bituca no chão e apaga com seu sapato.

— Como isso é possível? — pergunto com ansiedade.

Olho para o investigador , ele está abatido, respiro fundo antes de começar.

— Na verdade não faço esses tipos de exames. Como eu poderia esperar que alguém chegasse ainda vivo no necrotério? Em tantos anos de profissão nunca me deparei com uma coisa dessas, e pior, são DUAS agora!

De volta para a delegacia, tiro as fotos da última vítima de dentro do paletó e jogo sobre a mesa. Ana Cruz Monteiro, 19 anos, envenenada, chegou ao necrotério ainda viva, porém perceberam tarde demais, com ela já exposta em cima da mesa. O Prefeito e o Governador, assim que souberam ligaram para mim para cobrar providências. Com a cabeça entre minhas mãos tento controlar a dor nas minhas têmporas, mas não há meios de fazê-la ir embora.

Que tipo de sádico faria isso? Logo não seria mais possível deixar a imprensa longe dos fatos e quando a opinião pública cair sobre o caso com certeza perderei o emprego.

Pego a papelada de Laura e Ana. Deve haver algo em comum com as duas. O mais óbvio é a beleza, as duas moças eram estonteantes, porém as semelhanças param por aí. Laura era secretária do prefeito, Ana trabalhava em uma floricultura. Segundo o laudo de necropsia, Ana teve um maior contato com o veneno, porém apresentou mais resistência do que uma pessoa comum.

A secretária atravessava o prédio abandonado para chegar em casa, Ana estava trabalhando quando “morreu”. Talvez esse possa ser um ponto de origem. As duas mortes estavam relacionadas ao trabalho, pego meu paletó e resolvo ir primeiro ao gabinete do prefeito.

No caminho consigo fumar uns três cigarros, quando paro em um semáforo percebo que se formou uma mancha amarelada no teto do meu carro ocasionado pela fumaça do tabaco sendo queimado. Talvez eu devesse parar de fumar. Enquanto fico imaginando qual seria o estado de meu pulmão, alguém buzina me avisando que o farol já está verde faz tempo. Alguns minutos depois encosto o carro perto da entrada para o gabinete e salto.

O vigia me deixa entrar e em poucos instantes já estou acendendo as luzes do escritório de Laura. Um monte de papéis organizados por fitas coloridas indicam os assuntos, os gabinetes e pastas são etiquetados de tal forma que qualquer um poderia achar o que procurasse. Enquanto olho esta organização penso na minha bagunçada mesa. Sinto na cadeira que já acomodou a secretária em sua função e ponho a pensar no que poderia ter acontecido. Espalho meus papéis do caso sobre a mesa tirando alguns objetos do lugar para dar espaço, inclusive um bonito arranjo floral.

Arranjo floral.

São algum tipo de cactus com flores azuis e vermelhas, muito bonito na verdade, um laço rosa o envolve terminando em um cartão de visita da Floricultura Vitória Régia. O nome não me é estranho. Reviro os papéis e encontro o que eu procurava, Vitória Régia é onde Ana trabalhava. Recolho tudo com pressa e sigo de carro até a floricultura.

Avanço alguns sinais vermelhos até encontrar a rua, estaciono em cima da calçada e entro rápido dentro do comércio que ainda está aberto.

Levei tamanho susto quando o investigador entrou que achei que fosse desmaiar. Ele dissera que cuidava do caso da minha filha, pobre Laura, e estacou quando viu um arranjo na minha mão. Perguntou de onde viera e eu entreguei para ele o telefone do comprador, que só entregava este tipo de cactus. O policial logo telefonou para o número, porém não concluiu a ligação. Tal como entrou, saiu chispando para algum lugar.

Espero que ele possa prender o assassino de Laura.

Meu celular toca uma vez. Olho para o número e o reconheço. Começo a pensar quais pistas eu deixei para trás que acabaram por me incriminar. Gostaria que as pessoas apenas pudessem compreender o quão bonito é o corpo humano, ainda vivo, sendo aberto. Todos aqueles órgãos se mexendo em completa sintonia. O sangue correndo pelas artérias como se não soubesse da morte iminente.

Quando eu vi Laura respirando não tive coragem de prosseguir, mas com Ana... Pude abri-la e ver sua vida escorregando entre MEUS dedos. Que sensação maravilhosa! Desde que descobri que o veneno do Cactus de la Falsa Muerte, tive várias experiências magníficas de aprendizado. Meu necrotério recebeu duas novas amiguinhas que ganharam um arranjo de flores muito especial, pensei que Ana não teria anticorpos o suficiente para não sucumbir ao cactus, mas felizmente a florista tinha um corpo escultural para ser admirado.

Puxo uma das gavetas e observo a placidez de minha próxima cobaia, parece um anjo dormindo. Pego um bisturi e este reflete alguém atrás de mim.

— Parado Bruno! — gritei quando ele me percebeu

O legista ergueu as mão instintivamente segurei-o com a mão esquerda enquanto tentava com a outra pegar as algemas. Bruno deu um solavanco e me acertou uma cotovelada no peito, perdi o ar e acabei caindo no chão de joelhos. Com um movimento rápido o legista cortou meu rosto, se eu não tivesse destreza o suficiente teria sido meu pescoço. Nós nos engalfinhamos feito animais em uma rinha. Então um tiro foi disparado.

Bruno deu uma longa risada olhando em meus olhos e depois caiu. Meu rosto coberto de sangue respingado ainda mantinha a mesma expressão enquanto o legista morria. Tento me levantar e sinto uma tontura terrível, passo a mão na nuca e arranco algo grudado em minha pele. Um cactus.

— Dr. Felipe Roberto Nunes, autópsia de Hugo Ferreira Campos.

Desligo o gravador e o pouso em cima da mesa. Quem diria! O velho doutor Bruno um assassino. E pior. O maldito me deixou três corpos para preparar, incluindo o investigador que o matou. Passo o bisturi pelo tórax do policial fazendo um “Y”, afasto a pele e começo a necropsia.