O Roubo da Gravura

A chuva apertou quando Dave já estava próximo da mansão. Decidira vir a pé, seus sapatos estavam um pouco enlameados, porém ele não ficara molhado. Para ingleses carregar consigo um guarda chuva é questão de patriotismo, ainda mais em terras estrangeiras. Na Inglaterra de Dave o clima é sempre chuvoso e feio, nos primeiros dias na Rússia, ele até estranhou a falta de chuva, mas o frio e a neve são rotina.

Formado pela Scotland Yard como investigador criminal e com diversos cursos na área da criminalística, Dave foi o primeiro nome a ser lembrado quando o crime ocorreu. O investigador foi chamado para treinar a polícia russa e acabou recebendo uma oferta para investigar um roubo, seu contratante é uma pessoa muito importante no governo. Um crime irrecusável de se resolver.

Ao apertar a campainha, Dave sussurrou para si mesmo o nome do contratante afim de corrigir eventuais erros de pronúncia. Dimitri Yeva. Poucos segundos depois um homem alto com o rosto bem escanhoado abriu a porta. Suas vestes indicavam que ele é um mordomo. Seu cabelos grisalhos destoavam de sua pele ainda jovem.

— Bom dia – disse o mordomo em russo.

— Bom dia, Dimitri Yeva está?

— Ele lhe aguarda na biblioteca. Tenha a bondade de me seguir.

O detetive seguiu pelo corredor, sempre um passo atrás do mordomo. Os dois pararam em frente à uma porta e o empregado abriu com a mão esquerda enquanto fazia menção para o outro entrar usando a outra mão. Dave entrou no cômodo com estantes feitas de madeira nobre e repletas de livros. Em frente à lareira se encontrava seu empregador, um homem rechonchudo de vasta costeleta e cabelos ralos. Sua mão enorme ostentava ao menos quatro anéis feitos de ouro, em sua boca repousava um cachimbo feito de marfim. Ele se virou lentamente e observou o jovem detetive que estava inquieto na entrada, fez um gesto para que esse se sentasse em uma cadeira em frente.

— Sente-se garoto. Explicarei sobre o trabalho.

— Claro – disse o rapaz enquanto sentava na cadeira.

— Fiquei impressionado com seu currículo rapaz. Imagino que este caso que me perturba não será nada desafiador para você – disse Dimitri arqueando o corpo em direção ao investigador.

— As coisas mais simples podem se tornar complexas.

— Espero que não – disse quase para si mesmo o russo enquanto mexia nas suas costeletas – vamos ao problema. Sumiu uma gravura minha. Aliás uma gravura valiosíssima.

— Conte mais – disse Dave enquanto se encostava na cadeira.

— É um croqui que pertenceu a Joseph Stalin. Ele deu ao meu pai como presente. Disse-me o avaliador na ocasião da apólice de seguro, que o próprio Stalin escreveu por cima do desenho com uma caneta vermelha.

— O quê retrata a gravura?

— É um nu masculino. Stalin colecionava este tipo de desenhos.

Dave queria rir mas não seria adequado. Qualquer piada poderia ser mal interpretada pelo interlocutor. Resolveu apenas assentir com a cabeça enquanto seu empregador contava sobre o valor da peça e que ele precisaria assinar o boletim de ocorrência emitido sobre o roubo.

— Entendo – retomou Dave a conversa – quem mora com o senhor?

— Igor, o mordomo, e Oxana que é minha cozinheira.

— Pode me mostrar onde o senhor guardava tal desenho?

— Claro. Siga-me.

Os dois se levantaram e seguiram até um escritório. Dave esquadrinhou o cômodo antes de entrar, os moveis eram austeros e de madeira escura, em um dos cantos da sala uma escrivania com a gaveta aberta. Dimitri apontou para a gaveta indicando onde foi a última moradia da gravura.

— Pode ficar a vontade. Caso precise de mim estarei na biblioteca lendo. Lembre-se que você tem autorização minha e da polícia para efetuar prisão caso encontre o ladrão – dito isso, Dimitri saiu da sala deixando o investigador sozinho.

O detetive calçou suas luvas de borracha e se aproximou da mesa. Como tudo naquela mansão, a escrivania também era feita de madeira escura. Nas duas laterais do móvel fechaduras de metal compunham a segurança da obra. Dave puxou a gaveta até sair e entendeu o mecanismo. Era preciso uma pessoa girar as duas chaves ao mesmo tempo para abrir, o lado esquerdo estava um pouco arranhado, incluindo até feridas mais recentes na madeira, diferente do lado direito que não havia um arranhão sequer.

As chaves ainda se encontravam presas à mesa. Dave fechou e tentou abrir, descobriu que para destrancar tinha de ser sincronizado, não adiantava abrir uma fechadura e depois a outra. Enquanto examinava por debaixo do móvel ouviu passadas na sala, o investigador se assustou de tal forma que deu um pulo e bateu com a cabeça contra a gaveta. Saiu debaixo do móvel com a mão na testa e viu Igor com uma bandeja e um copo.

— Água senhor?

— Não obrigado. O senhor é Igor, correto? – perguntou o investigador.

— Sim senhor.

— Há quanto tempo trabalha para o senhor Dimitri.

— Faz cinco anos em abril – respondeu o mordomo com calma.

— Gosta do trabalho?

— Não tenho queixas.

— Pode me servir um copo de água?

— Claro.

O mordomo segurou a jarra com a mão esquerda enquanto enchia o copo até o topo. A manga do paletó desceu um pouco e Dave notou uma tatuagem saindo de seu braço, com um traço fraco e tinta de má qualidade já esverdeada pelo tempo.

— Por quanto tempo ficou preso? – perguntou Dave sendo direto.

— Três meses – disse o mordomo demonstrando surpresa.

— Posso perguntar qual foi o motivo?

— Roubo.

O investigador tomou um gole da água e agradeceu. Igor saiu da sala em estado de choque, pois nem seu patrão havia desconfiado das tatuagens ganhas enquanto ele permanecera preso. Agora com o sumiço do quadro ele se tornou o principal suspeito.

Dave terminou a inspeção sem muito sucesso, saiu do escritório e foi até a cozinha. Atrás de um fogão enorme estava Oxana. A mulher devia ter menos que um metro e meio, havia em frente de uma das panelas um banquinho que servia para esta subir nele e poder mexer o caldo que fervia. Parecia uma criança tentando se virar em um mundo de adultos.

Quando o detetive chegou perto, Oxana quase caiu do banquinho por causa do susto que levou. Dave tentou se desculpar mas a mulher o interrompeu com a mão enquanto procurava algo no avental. Tirou um frasco em uma bombinha e começou a usá-la. Oxana tem asma.

— Desculpe-me se assustei a senhora.

— Tudo bem. É só me sentar um pouco que me sentirei melhor.

— Não era minha intenção assustá-la – desculpou-se Dave.

— Eu sei que não.

Enquanto ela mantinha a mão sobre o peito, o investigador reparou em algo. Ela tinha um anel enorme, feito de ouro, porém muito masculino e um tanto quanto largo em seus finos dedos. A cozinheira notou que Dave olhava para o anel.

— Eu o achei hoje de manhã. Esqueci de entregar para Dimitri – falou Oxana mais rápido do que pode.

Dave não disse nada. Pediu licença e se levantou. Passou pelo corredor e sentiu o peso do olhar da cozinheira enquanto caminhava até a biblioteca. Encontrou Igor no meio do caminho que ficou o olhando também até ele entrar no cômodo.

Dimitri continuava sentado na poltrona, se levantou com a entrada do detetive, este estendeu as mãos em sinal de cumprimento. O empregador foi cumprimentá-lo mas em um movimento rápido Dave o algemou as mãos.

— O quê você está fazendo? – gritou Dimitri.

— Prendendo um golpista – respondeu Dave com serenidade.

— Perdeu o juízo garoto?

— Não. Foi tudo muito fácil. Oxana não pode ter roubado a gravura, pois não conseguiria abrir a gaveta sem ajuda, seus braços não alcançam os dois lados da mesa. Igor conseguiria abrir o móvel, porém o mordomo é canhoto e só há riscos do lado esquerdo da madeira e não do direito, indicando que um destro fizera o trabalho encontrando dificuldades em encaixar a chave do lado esquerdo. Sobra apenas o senhor. Que tem um ótimo motivo: Uma apólice de seguro da obra. Não gosto de que me usem. O senhor deverá se explicar à justiça.

— Eu sou seu empregador! – gritou Dimitri.

— Desculpe senhor, eu trabalho para a verdade.

Enquanto Dave saía da casa, deixou para trás dois empregados perplexos com os acontecimentos da noite.