DUAS FATALIDADES POLICIAIS

DUAS FATALIDADES POLICIAIS

Era a década de 1980. A violência ainda não era tamanha como nos dias atuais. Mas a violência urbana já grassava pelas grandes cidades brasileiras. É bem verdade que ainda remanesciam os bandidos românticos ou pouco atrevidos como o Cabelinho de Fogo, o Sete Dedos, o Cintura-Fina e a Maria-tomba-Homem. Cada qual tinha sua especialidade, seus truques e suas artimanhas na arte de tomar o alheio. O Cabelinho de Fogo só furtava carros possantes como Landau, Maveric, Doge e similares; o Sete Dedos era o mão leve que batia as carteiras dos desavisados nas estações e na praça sete de setembro; o Cintura-Fina era a bicha mais delicada da Rua Guaicurus e adjacências e a Maria-tomba-Homem bebia às custas dos bebuns no bar Elite, furtava-lhes e se algum deles reagia ao furto ela simplesmente os derrubava no chão e seguia em frente.

Lembro-me: ocorreu no mês de novembro de 1982 uma tromba dágua na capital mineira, ocasião em que os barracos ribeirinhos do Rio Arrudas foram destruídos. Lembro-me que os casebres próximos à ponte do frigorífico Perrela desceram rio abaixo boiando como barcos. Aquela gente humilde mal teve tempo de salvar alguns pertences, sem contar as inúmeras mortes. No bairro Sagrada Família, embora, longe do Arrudas, muitas casas se despencaram morro abaixo, causando soterramento e morticínio.

Passada a tormenta pluvial veio o sol, brilhante... E ficaram as marcas da tragédia na cidade: Quase tudo à ribeirinha foi arrastado e arrasado pela enchente. Muitos barracos não tinham reconstrução porque o terreno foi levado pelas águas; muitos pertences já não valiam mais nada. E o tempo passava lento... E aqueles pobres favelados buscavam reconstruir suas vidas... Muitos se mudaram para bem longe do rio e dele não tinham nenhuma saudade... Só tristes recordações amargas.

E outro domingo amanheceu na capital. Às 6:00 horas novo turno de policiais-militares entraram de serviço no décimo-sexto batalhão de polícia, no bairro de Santa Teresa. Na parte da manhã as ocorrências foram de rotina. Muitas pessoas ainda iam à missa, alguns bebuns voltavam ziguezagueando para suas casas e a maior parte da população dormia até mais tarde. Mas os policiais trabalhavam incansáveis.

Era aproximadamente 11:00 horas quando uma mensagem veio pelo rádio da patrulha: Atenção, assalto na Rua Dona Senhorinha, na Boa Vista. Um homem armado de faca, trajando calça escura e camisa preta assaltou um transeunte e evadiu-se numa bicicleta em direção ao bairro São Geraldo. A rádio-patrulha do sargento Cosme ouviu a mensagem e encontrava-se nas imediações. Então se deslocou para a ponte que divisava o bairro Caetano Furquim com São Geraldo e ficaram vigilantes. Passado alguns minutos eles viram um homem montado numa bicicleta vindo naquela direção, e, subitamente o dito cujo largou a mesma e começou a correr para o lado da linha férrea e do rio Arrudas. Então a rádio-patrulha saiu em perseguição ao homem que vendo-se encurralado atravessou a linha e adentrou no rio, atravessando para o lado do bairro Caetano Furquim. Aí, o soldado Saturnino adentrou o rio perseguindo o assaltante, enquanto o sargento Cosme dava a volta pela ponte para cercar o meliante. Os dois companheiros se separaram e se perderam de vista.

O graduado lograra êxito e prendeu o bandido, e, aguardou a chegada do soldado... Mas nada do Saturnino aparecer... Então o sargento recolheu o preso ao compartimento fechado da rádio-patrulha e saiu margeando o Arrudas a procura do colega... Andou por uns cem metros e nada... Em sua direção vinha uma mulher que lhe disse ter visto um soldado atravessando o rio atrás do bandido e de repente sumir dentro do ribeirão. Ela indicou o lugar onde o Saturnino tinha desaparecido, engolido que foi por uma antiga cisterna... O sargento Cosme tirou os apetrechos policiais e mergulhou no local... Minutos depois ressurgiu da água segurando o soldado... Ele ofegava e seu companheiro jazia sem vida.

O soldado Saturnino estava noivo e se casaria dentro de alguns meses... Triste sina: A morte o levou e sua noiva ficou viúva antes mesmo de casar-se com seu amado e diligente noivo.

Esta outra ocorrência também aconteceu na década de 1980, no ano de 1985.

Era num sábado. Já passavam das 18:00 horas, e, o turno de policiais-militares do décimo-sexto batalhão estava prestes a ir para o trabalho nas ruas, praças e avenidas de Belo Horizonte. O sargento-adjunto informou ao oficial que faltava um homem-patrulheiro para compor a guarnição do cabo Pereira. Aquele oficial perguntou se algum soldado queria trabalhar na rádio-patrulha. Depois de um pequeno silêncio surgiu um voluntário, um soldado interiorano recém-chegado do sétimo batalhão de polícia, sediado na cidade de Bom Despacho. O soldado já tinha passado dos trinta anos de idade, porém, nunca tinha trabalhado em uma rádio-patrulha. O tenente perguntou ao PM: quer mesmo ser o patrulheiro do cabo Pereira? Aí ele respondeu, quero. E pensou: será a minha primeira vez, vou dar conta do recado.

A noite transcorria normalmente. Os belo-horizontinos curtiam o final-de-semana despreocupados. A lua brilhava no firmamento e os céus estavam coberto de estrelas e nuvens esbranquiçadas. Aves notívagas riscavam a noite e os céus. E, pouco a pouco a noite ia morrendo e a calmaria da cidade silenciava as ruas e as casas da capital.

A rádio-patrulha do cabo Pereira rondava a Zona Oeste e as principais avenidas dos bairros Padre Eustáquio, Pedro Segundo, Caiçara e Carlos Prates. Naquela noite até que as ocorrências foram poucas. Já passavam das 4:00 horas, a madrugada estava um pouco fria e os sinais de trânsito acendiam e apagavam para poucos carros que ainda transitavam pela cidade, na maioria táxis.

E a madrugada ensejava seu prelúdio matutino. E as horas morriam lentas, quase agonizantes. Os homens da lei continuavam seus trabalhos e já esperavam pela aurora e pelo término do turno de serviço. Então, o cabo Pereira conduzia sua rádio-patrulha pelo bairro Carlos Prates e resolveu ir até o bairro Caiçara. Ele passou por diversas ruas até ganhar a rua Rio Pomba e começar a descê-la para entrar na avenida Carlos Luz. Ele trafegava devagar... O sinal de trânsito estava aberto para ele... Ele então começou a atravessar o cruzamento quando, inesperadamente, um carro branco, Brasília, furando o sinal vermelho bateu violentamente contra a C-14 do cabo Pereira, bem no lado onde o soldado Hélio estava sentado, na parte traseira da viatura. O soldado foi arremessado contra a outra porta da C-14, caindo de cabeça sobre o asfalto da avenida Pedro Segundo. A Brasília estava carregada de sucata de ferro-velho que se espalhou dentro da viatura e no asfalto da avenida. O soldado Hélio estava imóvel... O cabo Pereira estava preso na cabine da viatura e o soldado auxiliar teve que socorrer os dois. Eles viram que havia gravidade no acidente e o cabo Pereira mesmo ferido abriu a sirene da rádio-patrulha e levou o companheiro para o hospital de pronto-socorro... Mas já era tarde... Demasiadamente tarde... O soldado Hélio não resistiu ao acidente e faleceu a caminho do hospital. Os companheiros choraram a morte do irmão de farda. E aquela fatídica noite... Naquele fatídico turno de serviço foram a primeira e a última vez que o soldado Hélio trabalhou de patrulheiro no décimo-sexto batalhão de Polícia Militar de Minas.

Belo Horizonte, 22 de julho de 2006.

PS: Aos irmãos Saturnino e Hélio. Deus os tenha em sua infinita generosidade.

F I M.