O Valor da Vida

O Valor da Vida

por Pedro Moreno da bibliotecadosvampiros.com

Quando meu olho esquerdo começa a tremer eu já sabia o que vinha. Busquei na minha mala o frasco de comprimidos. Antes de conseguir encontra-los já sentia o latejar na fronte. Aquela maldita dor de cabeça que me perseguia há um mês estava vindo e eu não achava os meus remédios.

Achei. Peguei logo quatro e enfiei na boca. Creio que o inventor dos remédios mastigáveis é algum tipo de masoquista. O amargor fica na minha boca e nem tenho onde alivia-lo. Aliás, não posso tocar em nada aqui sem luvas.

Estou à uma hora dentro da cena do crime e não obtive respostas às minhas perguntas. De luvas e sacolas nos sapatos para não “contaminar” a cena, já olhei em cada fresta do apartamento e até agora nada.

Vamos repassar. Às 9 horas da manhã a tia da vítima aparece para lhe fazer uma visita. Como ela não responde ao toque da campainha, resolve olhar pelo buraco da fechadura e repara que há alguém olhando pelo outro lado. Como a garota não responde, a tia chama a polícia.

Depois de todos os policiais não aguentarem ficar na cena do crime, eu apareço e sou o primeiro a entrar. Primeira coisa que eu penso é no sadismo. O assassino colocara o olho da vítima na fechadura. E o restante dos membros espalhados pela cozinha.

O outro olho encontrei entre as frestas da persiana. Uma das mãos amputadas pousa em cima do telefone e a outra, fechada na forma de um punho, está presa na também na porta. Se não fosse o bastante a língua dela estava dentro do microondas. A cabeça em cima de uma bandeja e o corpo deitado no sofá.

O legista chega e retira o corpo, peço para deixarem as partes amputadas para eu poder analisa-las segundo o contexto. Quando saem, eu vejo um dos policiais suando e tremendo. Fecho a porta para não me incomodarem.

Obviamente os pedaços de corpos queriam dizer alguma coisa. Vejo na direção que os olhos da persiana estão. Há uma escada de emergência em caso de incêndio do lado de fora. Mas onde estaria a porta? Abro algumas cortinas e descubro a porta para o lado de fora. Bingo. Destrancada.

Olho para dentro do apartamento e conseguir ver o olho como se tivesse me observando. Pego o rádio e passo para os demais investigadores não deixarem os moradores saírem e tomar depoimento deles. O assassino poderia ser um morador.

Dentro da cozinha novamente vou ao telefone com a mão pousada em cima. Parece que o assassino ligara para alguém usando a mão decepada. Vejo no registro de chamadas e só há um telefone. Ligo do meu celular e ouço ao longe o telefone tocando em algum lugar do prédio.

Depois de alguns minutos de conversa eu desligo. Era o síndico. Passo o rádio para os policiais falarem com ele. Quando desligo imagino o que tanto essa mulher ligava tanto para ele?

Meus pensamentos são interrompidos por batidas na porta. Abro e vejo um dos investigadores que logo desfia um comentário resumido o que os moradores disseram da defunta. Era chata e fofoqueira. Agradeço e fecho a porta. Nos dias de hoje as pessoas matavam por poucos motivos e eu deveria levar em consideração esta informação.

Parece que ela constantemente fazia reclamações sobre os outros. Logo as coisas começavam a ficar claras. Com certeza alguém do prédio a matara. Tinha o motivo e a oportunidade para tal. É isso que dizia aqueles pedaços do corpo dela.

Os olhos na fechadura e na persiana mostravam a vigilância dela no prédio. Enquanto a mão pousada sobre o telefone indicava as reclamações dirigidas ao síndico, que agora se tornara meu principal suspeito.

Enquanto a língua no aparelho de microondas era até obvio demais.

Olhei para a mão presa na porta. Provavelmente seria uma alusão ao fato dela reclamar diretamente com os vizinhos? Mas porque ela bateria na porta e não usaria a campainha? Ao que tudo indica, eu teria que formular melhor minha teoria.

Noto algo estranho no teto. São marcas de sujeira em forma de círculos. Não vejo escadas por perto e as cadeiras não dão muita segurança para subir nelas. Como uma senhora com 1,58 de altura conseguiu alcançar o teto?

Olho em volta e vejo uma vassoura caída no chão. Ao menos uma parte dela. A vassoura fora quebrada e jogada para baixo do sofá. Vejo a ponta e confere. A falecida usava a vassoura contra o teto. Enquanto imagino o porque, começo a ouvir uma música alta advinda do apartamento acima.

Saco a arma e saio pelo corredor gritando para o policial me acompanhar. Avançamos a passos largos pela escadaria e então vislumbro o apartamento de onde vem a música. Aperto a campainha e esta não funciona. Agora entendi o porque da mão presa à porta. Bato vigorosamente e a música diminui. Ouço passos se afastando nervosamente e então uma porta sendo destrancada. A saída de emergência.

Com o uso do ombro a porta vai abaixo e posso ouvir o assassino descendo a escada, passo para o lado de fora e miro no rapaz. Ele desce desesperado pela escada. Dou um tiro e acerto em sua perna. Ouço ele cair. Desço e o encontro com olhos de loucura a olhar em direção de sua falecida vizinha. Eu o algemo e ele ainda diz que ela está lá... Vendo-o. Olho para a janela e contemplo o olho arrancado preso na persiana.

No caminho até a delegacia fico pensando quanto vale a vida humana. Meu olho esquerdo começa a tremer.