Estar-se em Lugar Nenhum
"Mama, they try and break me"
Trecho da música "Hero of the Day", Metallica.
Eu me lembro...
Meu pai era delegado de uma cidadezinha lá do interior. Um dia ele prendeu um sujeito que matou uma família inteira por causa de... nada! Antes disso, ele havia assassinado um outro cara por causa de uma pergunta tipo: "Como você está?". Matou muitos: crianças, jovens, adultos e velhos; sem distinções! Ele foi preso em um ato animalesco, meu pai disse que nunca vai se esquecer daquilo. Uma denúncia anônima o levou até uma casa no centro da cidade, era uma casa com cerca viva e portão preto, as paredes eram de pedra e o muro da frente ia de uma ponta a outra do terreno, quase do tamanho de um quarteirão. Ao chegar, meu pai entrou e caminhou pelo vasto jardim, foi até a sala e lá ele viu o assassino com uma criancinha. Estavam brincando de carrinho, ele não parecia querer machucá-la. Ele deu a volta e quando passou pelo portãozinho que levava até o quintal, meu pai se deparou com um corpo, era um homem de mais ou menos cinqüenta anos, estava esquartejado e havia sangue por todo lado. Um de seus homens o chamou, havia alguém junto com as roseiras. Meu pai pensou "é a mãe!". Depois, prisão!
O cara não quis fazer nada com a criança, estava apenas tentando lhe entreter até a hora que a polícia chegasse. Quando foi acusado de assassinato, o homem, de nome William, disse: "É surpreendende saber o que se pode fazer quando se estar em lugar nenhum.". O assassino foi condenado a cento e vinte anos de prisão. Morreu ao completar seis meses, matou-se enforcado. Agora, ele está em lugar nenhum?
Já faz algum tempo que esse tal Tony me enche a paciência. Há algumas horas, mais uma vítima foi encontrada morta. Esse garoto cheira à morte! A cena: um posto de gasolina no meio do mundo. Quando cheguei lá vi algo que só é comparável aos crimes que meu pai, que o Deus o tenha, havia visto... sangue por todo o lado. A vítima estava de bruços com os braços amarrados para trás e as pernas quebradas. O homicida havia grampeado as pálbebras do indivíduo na testa, era um homem branco e seus olhos azuis estavam abertos. A boca acusava que, enquanto Tony agia, a vítima estava viva. O sangue escorria vindo do ventre. O legista o virou e a cena que assistimos era repugnante: vísceras por todos os lados. Eu e meu assistente saímos, o pobre Hector, meu auxiliar, vomitou nosso café. O sargento Ronney colocou a mão no meu ombro, tirou-a e logo pegou um cigarro e se pôs a fumar do meu lado, em silêncio.
"O que acha, Wisemann?", perguntou sem olhar para mim.
"Eu não sei, pode ser qualquer coisa. Um lunático querendo sua vaga no inferno", andei mais um pouco, até onde Tony havia deixado sua faca sem digitais, "Ô Ronney, você lembra do William? Aqueles anos obscuros..."
"Se lembro?", começou a andar. Era alto, um negro corpolento, "Ainda tenho pesadelos, pequeno Wise! Teu pai me dizia que passaria os próximos dez anos sem dormir depois daquela cena..."
Rimos. Mas logo paramos, virei e olhei para Ronney.
"Quem está me tirando o sono é esse garoto..." e saí devagar, Ronney foi pelo lado oposto. Passei perto da viúva da vítima, ele chorava desperadamente; eu, não sabia o que fazer...
(A cabeça de Tony doía, ele precisava de remédio... "Não tome mais, não tome mais... Você não precisa deles... Você precisa acabar com alguém... Você estará bem!". Onde ele estava? Ele não sabia. Havia um posto de gasolina bem ali na frente. Ali deve ter analgésico. Aspirina. Qualquer coisa! A perna doía tanto quanto a cabeça...Droga! Aquele maldita cerca da Sra. Martin quase decepa a perna dele... Ele adentra o recinto sem perceber, um cara com o nome de Stuart na camisa vem lhe atender: "Quer algo, senhor?". Tony o analisa e responde: "Tem Aspirina?". Stuart assentiu e foi até ao balcão... "Eu te odeio! EU TE ODEIO!" Tony pega um taco de beisibol e acerta a perna do homem, ele cai. Mais um golpe, agora noutra perna... "ele te odeia, o mundo de odeia!". Vozes e mais vozes! Morte... Depois, Tony vai embora.)
Eu via as fotos dos últimos três crimes e a ficha do garoto Tony. Andersen Anthony Carmasi, vinte e três anos. Segundo grau incompleto, filho de Mark Carmasi e Florinda Carmasi. O pai morreu de infarto há dois anos, era professor; a mãe é professora e mora no interior do estado; ninguém sabe se ainda vive. Supostamente Tony fugiu de lá na época da morte do pai. Foi preso duas vezes por pequenos furtos, mas foi liberado. Primeiro homicídio foi há nove meses; vítima: Daniel Acosta, morto no trabalho: uma mercearia nos limites da cidade. Segundo homicídio: Angela Martin, morta na sua casa perto do rio, também na saída da cidade. Agora era Juan Stuart, morto no trabalho.
Evidente que Tony procurava vítimas longe do centro da cidade, ele não atacaria no centro com medo da polícia? Pai, onde será o próximo ataque? Há tantas casas e esse garoto está pertubado e com um novo rosto... Ninguém o vira desde que foi solto há dez meses. Será que ele estaria em lugar nenhum?
Eu me lembro, pai...
Você saindo para o trabalho, o carro na garagem. Seu beijo na testa da mamãe e seus olhos pairando sobre aquele garoto de doze anos. Olhos com ar bem paternal: "Hoje tem jogo, chefinho, vamos juntos...". Abriu a porta, saiu. Eu queria ir com você! Mas mamãe não deixou, então escapei dela e abri a porta e quando saí vi seu rosto sorri e logo depois ficar triste... assustado... sem vida! Um tiro vindo do outro lado da rua. Um homem de jaqueta preta, William?! Não! Era outro... Revólver para têmpora e outro disparo. Mas meu pai morreu...
Tenho que pegar Tony. Não quero que ninguém sofra assim... O telefone toca, era Ronney:
"Acordado, Chefinho? Nosso amiguinho está na Rua P... matou um, mas tem refém, estou indo para lá. Vista-se e vamos logo!". Vesti-me e desci as escadas numa corrida abrupta e descomumal. Hoje eu o pegava!
Quinze minutos depois, estávamos Ronney e eu na Rua P... Tony estava na casa com um homem chamado Albert Rios, ele matara a esposa dele com um tiro de escopeta calibre .12 roubada de uma viatura que estava próxima. Pelo que foi dito à polícia, Tony foi até a pequena farmácia de Albert e quem o atendeu foi Maysa Rios, esposa dele. Ele perguntou por Aspirina, ela disse que não vendia para ele. Para Maysa, Tony parecia um bêbado inveterado. Má opinião... Não foi com a cara suja dele, cabelos despenteados. Não gostou dele. Mas o homicida deixou para lá, não estava armado, queria estar em lugar nenhum? O que houve, Tony? Por que não a matou logo?
("Dê-me algum remédio...", Tony implorava, mas a barítona não o concedia. Ela parecia com medo dele... "Eu disse que o mundo é mal, pequenino! Julgam-lhe por aquilo que aparenta ser. O medo é algo que não vê quem é quem... Todos têm medo de você, Tony!". Mas o garoto não era ruim, era o mundo. "O MUNDO É MAL, TONY! Seu pai morreu por causa desse mundo mal. Sozinho naquele hospital, só eu e você, meu filho! Meu Tony...". O homicida precipitava um choro. A mulher do balcão o rotulou de louco. Falava sozinho: "Mãe, ela não quer me dar remédio igual aquele médico não quis fazer nada por papai...". A mulher expulsou o garoto da farmácia, mas Tony não desejou-lhe mal... "O mundo é um falso pragmático, vamos Tony, vamos embora...". Depois, o ódio o tomou o coração. Cegou. A voz de sua mãe dissipara, agora era ele e a aquela gorda do inferno! "Ela matou meu pai?!". Seguiu-a até o centro. Não a mataria ali, chega de estar longe dos olhos de Deus. Matava longe da vista da torre da igreja. Deus não poderia ver. DEUS SERIA CEGO! Caminhou uns trezentos metros rua abaixo, a mulher entrou em uma casa azul. Matá-la. Viu uma viatura aberta, tinha uma escopeta calibre .12 ali. Pegou-a e foi com ela até a porta da casa. A mulher abriu a porta com tela e depois a outra. Tony levantou a escopeta, quando a mulher se virou para fechar a porta com tela viu o cano da arma. Um tiro... "MORRA, VACA!" O pobre homem na sala, nada a ver com isso. Polícia, droga! Como fugir?)
Tenho que agir.
"Ronney, me dê seu colete...", disse. Pensei em meu pai. Ronney me deu o colete e fui até a porta da casa onde Tony segurava o Sr. Rios. Na calçadinha da casa, jazia o corpo de Maysa sem vida... e sem cabeça!
"Tony, sou o detetive Pietro Wisemann, estamos aqui para ajudá-lo. Não precisa fazer nada, só peço que solte o Sr. Rios...", ele não disse nada... "Tony, por favor, deixo o Sr. Rios ir por favor..."
Um dia, meu pai me disse depois que eu briguei com um valentão do colégio: "Tente persuadir, convença-o do erro que cometeu, se não der certo, deixe-o sozinho. Eles sempre saberão o que fazer.". Tony sabia?
"Meu pai morreu!", gritou Tony, "Por que esse homem deveria viver, todos pecam...", começou a chorar.
"Tony, todos nós merecemos uma chance. Ninguém é perfeito, dê isso ao Sr. Rios, você já tirou a vida da pessoa que ele amava. Isso dói! Quando perdemos alguém que amamos, dói; eu sei disso. Deixe-o ir!"
"Não!", gritou Tony novamente!
"Pense no seu pai, ele está triste com isso... Lamentamos muito o que houve com seu pai, mas não o magoe. Ele te ama!"
("Eu te amo, filho"... Era o pai. Ali ao lado do Sr. Wisemann. A culpa de sua morte não foi do médico... "Foi sim! O mundo matou seu pai, ninguém entende isso!"... "Mamãe disse que o mundo te matou, pai!". Tony está vendo o pai chegar mais perto. "Não filho, morri por você..." Tony lembra... O parque, naquele domingo, o beisibol. A bola arremessada para o meio da rua. "Cuidado, Tony!". O pai o salva de um atropelamento, era um bicicleta. O peito dele dói. Ele cai! Morreu... "Sua mãe está errada, ela sempre estava errada. Mesmo depois da morte, ela está errada...". Tony, chora. "Desculpa, pai!". "A culpa não é sua, filho. Vamos sair disso juntos...". A mãe de Tony não estava mais ali, ela se foi. Ela sempre achou o mundo ruim. Há quem seja bom e mesmo morto, seu pai parecia ser um dessas "almas boas".)
Tony se afasta do Sr. Rios. Os policiais se mexem. O garoto empurra o homem e entra na casa. Logo ao passar da porta, ele a tranca. Todos se aproximam da casa... um disparo! Apenas um... e depois silêncio. A correria confundiu-me por completo... E depois eu não lembro de mais nada.
Seis meses se passaram desde aquele dia estressante... Tony ainda faz parte de minha mente, como aquela lembrança que você jura que jamais vai esquecer e, que por um infortúnio, você acaba esquecendo.
Eu nunca vou saber o que fez aquele garoto mudar de opinião. Talvez meu pai saiba, onde quer que ele esteja. Sei que ele deve ter sentido dor, muita dor... Ele estava só, apenas um desorientado guiado pelos conselhos fúteis da mãe. Nunca teve ninguém por ele e ás vezes eu imagino que definitivamente é estranho o que fazemos quando estamos em lugar nenhum...
"Boa noite, pai."