COMBUSTÍVEL PERIGOSO (AS 7 HISTÓRIAS CAPITAIS, MUITO PIORES QUE OS PECADOS)

No enterro de madame Perugina, o professor Marinaldo Antônio Giordano se encontrou com

Dante Zunindo, o prefeito petista de Little Alligator.

A figura daquele homem medonho,

absurdamente magro, escandalosamente feio,

com o queixo enorme coberto pela barba

mal-aparada de cor avermelhada,

com muitos pêlos brancos já despontando,

de alguma maneira lhe pareceu familiar.

Ao final da cerimônia fúnebre, o professor não conteve sua

curiosidade e foi até ele.

Perguntou:

"Senhor prefeito, já não nos conhecemos de algum outro lugar?"

O pedante Dante Zunindo o contemplou do alto da sua arrogância e

respondeu com outra pergunta:

"O senhor costuma ir muito a Brasília?"

O professor mediu de alto a baixo o feioso e, graças à memória

prodigiosa, finalmente se lembrou:

"Não, não é de Brasília que o conheço. É de São Paulo e isso faz muito, muito tempo.

O senhor era ainda jovem, mas feio e tinhoso do mesmo jeito e,

além disso, um durango de merda. Vinha fugido de Curitiba. Sem grana para comer e muito menos pagar hotel, como era amigo de meu primo Baldur se aproveitou disso e, descaradamente, junto com uma sua namorada de nome Zilda, alojou-se de mala e cuia na minha casa, isso ainda

quando eu morava em São Paulo, em Vila Mariana".

1

ABATIDA DESDE A MORTE por envenenamento da linda cortesã Ana Mieszko Kwasniewiski, mais conhecida como Polaquinha – da qual gostava como fosse sua filha –, madame Perugina, proprietária do bordel chamado Palácio, caíra em profunda depressão e se enfurnara nos seus aposentos. Passou a tomar champanha, uísque e outras bebidas em quantidades exageradas e fumar mais de um charuto por dia, o que obrigou o renomado médico psiquiatra inglês sir George – contra os seus princípios moralistas e conservadores – a visitar a casa de prostituição, chamado para socorrer a desolada cafetina.

Receitou-lhe um antidepressivo e muitos calmantes, recomendando expressamente que evitasse qualquer tipo de bebida alcoólica enquanto estivesse sob tratamento com uso de medicamentos.

Mas Perugina não seguiu a recomendação e, certa manhã, antes mesmo das dez horas, quando a fiel Hermengarda – que também não observava as ordens do médico – levou até os seus aposentos o primeiro champanha do dia, a cafetina ainda dormia. Para sempre.

Ao lado do corpo, muitas garrafas de bebida, a maioria consumida por inteiro. Todas as cartelas de medicamentos estavam vazias, centenas de comprimidos – antidepressivos, soníferos e tranqüilizantes – tinham sido engolidos, junto com uísque e o que mais houvesse para beber em seu quarto.

Havia se suicidado durante a madrugada.

A morte foi muito comentada e o enterro solene e disputado. Muita gente compareceu, sendo que curiosos às pencas. A fama de madame Perugina despertava curiosidade em todo o povo, principalmente no mulherio local. Além dos curiosos, das meninas e da freguesia habitual da casa, o delegado Chamoun estava presente, acompanhado de sua equipe.

E outras personalidades locais, como o professor Marinaldo, recém-chegado de São Paulo, o prefeito petista Dante Zunindo e o bispo Dom Dagoberto, médicos conceituados como sir George e o doutor Dègard, e também o turco Saliba, representando a Associação Comercial.

Mais notória e surpreendente era a presença do advogado Cidineide Mourão, chorando muito e o tempo todo abraçado a Hermengarda. O rábula estava derramando lágrimas de crocodilo, no maior fingimento, pois, na verdade, exultava de alegria, já que sua amásia Hermengarda, depois do assassinato de Polaquinha, ficara com toda a herança de madame Perugina – descontada uma pequena parte legada ao Asilo São Vicente de Paulo –, uma fortuna imensa em bens imóveis – casas na capital, terrenos e sítios – e muito dinheiro aplicado, além de jóias e ações ao portador.

Orozimbo Salvador um foragido da lei e morador da casa – amante da prostituta Cornélia – não foi ao cemitério e ficou enchendo a cara no bar do bordel. Baldur Lucas, velho amigo da cafetina desde a juventude, também não estava presente. Uma semana antes havia se mudado para um vilarejo entre São Paulo e Rio de Janeiro, no Vale do Paraíba.

O delegado Chamoun não perdeu a oportunidade de se exibir e fazer um discurso à beira do túmulo, longo e tedioso, porém honesto e não falso como o falatório proferido pelo professor Marinaldo, freqüentador assíduo da casa de tolerância. Ouvindo tais falas de despedida e, finalmente, as benções finais do padre, um sujeito moreno e espadaúdo acompanhava tudo em silêncio, mantendo os braços cruzados e um ar bastante solene.

Era Macalé, o ex-guarda-chaves da antiga estação de trens, há muito tempo desativada e agora refúgio de marginais. Como muita gente, mesmo enfiado na fazenda-reformatório, ficara sabendo do passamento pelo falatório geral. Desde a abertura do bordel, Macalé estivera desconfiado que a sua falecida dona era a mesma menina que comera na sala da estação, quando ela estivera em visita à cidade, acompanhando seu namorado, Eleutério Arruda Martins Vieira, que viera de Santa Cruz do Rio Pardo para assistir a célebre Conferência de Little Alligator, isso ainda no distante ano de 1947.

Macalé estava internado há anos na fazenda-reformatório para bêbados inveterados, mas conseguiu com o supervisor Luciano Porretada liberdade condicional por um dia e uma noite – na qual aproveitou para beber todas – especialmente para ir ao velório e ao enterro de Esperança – este o nome, verdadeiro, pelo qual a conhecera.

Não teve mais dúvidas.

Depois de contemplar o rosto pálido da defunta. Terminado o funeral, entrou direto no boteco em frente ao cemitério e, amaldiçoando os anos de cativeiro na fazenda-reformatório, depois de emborcar muita cachaça, aproveitou para fugir de vez.

Laurinha, uma jovem professora viúva teve, naquele dia, a mais grata surpresa de sua vida.

Quando completava exatamente nove anos de ausência, subitamente, Saulo Pedra, seu suposto finado marido apareceu, vindo dos lados da estrada de Ribeirão Claro, caminhando a pé, as roupas rotas e esfarrapadas, barbudo e descalço, puxando uma carroça de duas rodas. Foi reconhecido por alguns moradores da cidade que estavam saindo do cemitério e imediatamente desatrelado da carroça que puxava e, colocado nas costas de alguns, entrou triunfalmente na cidade, sob a ovação de toda a população que estava nas ruas ou daqueles que saíram às janelas.

A professora, que também voltava da cerimônia fúnebre, quase sofreu um enfarte quando reconheceu o saudoso e amado marido, mesmo naquele estado andrajoso em que se encontrava e, assim que chegou em casa, precisou tomar meia caixa de ansiolítico – medicamento no qual era viciada – para se manter calma o suficiente.

O arqueólogo retornava das selvas amazônicas e carregava na carroça cento e oitenta e sete quadros de madeira, gravuras a fogo de figuras e escritos estranhos que, disse ele, era obra dos índios chamacocos – uma misteriosa e desconhecida tribo boliviana.

Laurinha tinha encomendado a Infâmia, dona do Bar e Pastelaria Pontual e amante de bichos de toda espécie, um cachorro feroz para soltar em cima do delegado Chamoun, que vinha promovendo arruaças na porta de sua casa, desejoso de manter com ela relações não muito recomendáveis para uma viúva honesta. Tinha pedido um animal treinado, um cão de guarda, como aqueles que via nos filmes de cinema, que pulam direto no pescoço, embora preferisse um que pulasse direto na vara e mordesse para valer, pois estava decidida a castrar o delegado.

A bodegueira arrumou um cão viciado em salsichas, bastava qualquer homem por o pinto de fora e o cão atacaria para devorar o membro e, talvez, o saco junto. Com o retorno de Saulo, Laurinha não precisava mais do animal. Caso o delegado insistisse em fazer arruaças na porta de sua casa, seu marido cuidaria de rechaçar Chamoun. Mas Capador – este era o nome do cachorro – agora que se tornara dispensável, precisava ser devolvido, vendido ou presenteado. Dava muita despesa, comia e latia demais, além de sujar todo o quintal de merda.

Saulo adorava mijar nas árvores do jardim e, um dia depois da sua chegada, exatamente no momento em que Laurinha preparava a coleira para devolver o animal à Infâmia, a desgraça aconteceu. Uma gritaria danada no quintal, Saulo desesperado com as mãos no meio das pernas e Capador saboreando o que seria uma salsicha. O arqueólogo foi levado às pressas para o pronto-socorro da Santa Casa, mas nada mais restava a fazer, o pinto definitivamente devorado e digerido.

2

A MOEDA NACIONAL TINHA MUDADO no começo do mês de julho, de cruzeiro real para real. Uma trapalhada, todo mundo com máquina de calcular no bolso, muita confusão no troco e muita discussão nos bares, lojas e mercados, algumas precisando de intervenção policial.

Infâmia estava golpeando a freguesia mais que nunca. A grande maioria se atrapalhava ao fazer a conversão, não se acertava com as moedas de centavos, e ela se valia da ignorância alheia para aumentar a conta e diminuir o troco. Além disso, remarcou absurdamente todos os preços, sem obedecer a nenhum critério.

A mudança da moeda ajudava a cidade esquecer do crime do qual Polaquinha fora vítima. Mas era pouco. Urgia promover alguma ação policial bem contundente para chamar a atenção da imprensa e dos contribuintes. Chamoun decidira resolver isso logo depois terminada a Festa do Texas – um ridículo evento anual da cidade – dando logo fim naquela roubalheira de Infâmia e, principalmente, no famoso cafezinho servido em seu botequim, supostamente batizado com cocaína.

Numa segunda-feira de manhã Chamoun chegou à praça cheio de aparato, fazendo tudo que podia para chamar a atenção: viatura com sirena ligada, luzes acesas e piscando, a equipe portando carabinas, se bem que descarregadas, já que não havia verba para munição.

A princípio o povo pensou se tratar de um assalto ao banco da esquina, mas quando a viatura passou direto, indo parar na porta do botequim, para lá acorreu entusiasmada.

Chamoun desceu da viatura e entrou no bar com o revólver em punho e, usando todas as forças dos seus pulmões, gritou:

– A senhora está presa, sua pilantra, e a sua empregada safada também. E esta porra de pastelaria de merda está fechada!

Juntou mais povo na porta, fregueses e balconistas das lojas vizinhas, passantes e gente que estava no ponto do ônibus. Até mesmo o misterioso senhor de pele escura, vestido de terno e gravata, levantou-se do banco da praça. Desde 1947, quando ainda jovem e houvera ali ao lado, no Grande Hotel da Municipalidade, a famosa Conferência de Little Alligator, nunca mais tinha visto tanto aparato e tanto barulho.

Infâmia, que não se intimidava facilmente, e também aos berros, foi logo retrucando:

– Pilantra é a sua mãe, seu filho de uma puta, e se quiser me prender vai ser na porrada!

Em seguida, a pasteleira passou a mão no ferro de puxar a porta de aço. Infâmia não tinha medo de nada, era de esquerda, petista radical e arruaceira, vivia participando de passeatas e quebra-quebras. Além disso, havia acabado de cheirar uma carreira, estava doidona e pronta para qualquer coisa, e mandou o ferro na cabeça do delegado.

Seguiu-se um tumulto generalizado. Genibunda, a balconista, entrou na briga, e também Lucy Anne – companheira das noitadas desavergonhadas de Infâmia – que por acaso ali se encontrava naquela hora, as duas armadas de potes de balas e garrafas de pinga e cerveja.

O porteiro Cid, assustado com as proporções da baderna, correu de volta para o seu posto, o qual tinha abandonado para ver de perto a pancadaria, e telefonou para os bombeiros.

No fim da arruaça, Infâmia acabou sendo presa.

Chamoun, embora com a testa avariada, ficou satisfeito.

Com a retumbante ação policial conseguiu afastar do falatório local as histórias de desaparecimento de gente, viva ou morta, e profanação de túmulos, as quais começaram a circular logo após o assassinato da bela Polaquinha. Além disso, readquiriu um pouco de sua fama de machão e poderoso representante da lei e da ordem.

Assim que foi solta – ficou na cadeia só por dez dias, uma vez que nada se conseguiu provar sobre a suspeita composição do cafezinho –, Infâmia resolveu mandar tudo à merda, passou o ponto para um parente próximo e se mandou. Foi morar em Monteiro Lobato, lá pelas bandas de São José dos Campos, no estado de São Paulo, num buraco da serra, num mato daqueles fechados, tão selvagem como ela e levou Lucy Anne junto.

Um parente próximo de Infâmia tomou posse do ponto.

Genibunda, a balconista, foi colocada no olho da rua, pois não era pessoa conveniente e seria de bom tom, já que se desejava mudar o péssimo conceito do estabelecimento, que desse o fora. Desempregada e sem ter onde cair morta pegou de vez no pé de Cid, com o qual mantinha um caso escandaloso e imoral. Pegou de tal forma e ameaçou tanto escândalo, acusando-o inclusive da paternidade de um filho inexistente, que o infeliz foi obrigado a largar da família. O casal foi morar em Santo Antônio da Platina, onde se empregou no Hotel dos Viajantes, ele como porteiro e ela como faxineira.

No bordel, agora sem a disciplina imposta por madame Perugina, Cornélia passava o dia e a noite completamente bêbada. Salvador já estava com o saco cheio, ela não trepava mais com o fogo de antes e, nos raros momentos de lucidez, ficava falando em fazer um piquenique no mato, idéia que tirava o sono do foragido.

E, pior, insistia que queria um filho.

Tanto ele como Hermengarda estavam pensando em internar Cornélia na fazenda-reformatório especializada em tratar mulheres bêbadas. Como a outra, para homens, funcionava na base da reza, da pouca comida e da porrada. Cornélia estava bebendo tanto que, naquele mês seguinte ao da morte de Perugina, não teve mais jeito, certo dia foi mesmo preciso apelar para a internação.

Ela acordou lá pelas duas da tarde, com calor, suando em bicas. Afastou o lençol e sentiu frio. Uma baba azeda e repugnante, sem cor e gosmenta, escorria pelos cantos da boca.

Deixou o quarto e, com o andar frouxo, desceu pelada as escadas e foi direto ao bar, tentando abrir as portas do armário de bebidas, mas tremia tanto que não conseguiu. Desesperada, ansiosa, ficou andando de um lado para outro, xingando Salvador e Hermengarda, e reclamando de um cheiro forte, não era o fedor de vômito e merda que exalava de seu corpo, mas um cheiro esquisito, acre e penetrante, que só ela sentia.

Passou a dizer bobagens, afirmando que a luzinha vermelha do transformador da geladeira estava dando voltas pela sala, que iria queimar os seus pés e suplicava por uma bebida. Estava totalmente desvairada. Salvador entendeu logo aquele desespero, a síndrome de abstinência era violenta, abriu o armário, apanhou uma garrafa de uísque e já a ia entornando em sua boca quando, de repente, ela emitiu um berro pavoroso, caiu ao chão e começou a se estrebuchar toda, o corpo se contorcendo, as mãos crispadas, a cabeça martelando o assoalho. A língua se enrolava, a baba grossa escorria da boca e a urina brotava abundante das partes pudendas entre as pernas. Hermengarda segurou a sua cabeça, virando-a de lado e, com um dedo, puxou fora a língua, antes que a moça sufocasse.

Um minuto depois Cornélia parou de se debater e levantou como se nada houvesse acontecido, mas parecendo atordoada, sem saber onde estava. Foi levada para a Santa Casa, do jeito que se encontrava, pelada, babada, mijada e suja de merda, só com um cobertor por cima do corpo. De lá, depois de medicada com Gardenal e passar algumas horas tomando soro na veia, levaram-na para a tal fazenda que tratava de moças viciadas.

Nesse mesmo dia Salvador recusou o convite, feito por Hermengarda, para assumir a gerência da casa. A velha mineira tentou tudo, disse que precisava dele, era instruído, até apelou para o machismo, dizendo que homem impunha mais respeito que mulher no comando. Ofereceu alto salário e carro novo para usar no trabalho, mas não conseguiu convencê-lo. Salvador era aventureiro, largado na vida e não gostava de qualquer tipo de estabilidade. E, principalmente, detestava o verde, estava com o saco cheio de morar no mato. O Palácio, embora todo conforto oferecido, ficava no campo. Hermengarda insistiu, disse que cortava o mato, ia calçar tudo em volta e pulverizar a casa para espantar os insetos peçonhentos. Além disso, não existia só Cornélia no mundo, estava contratando uma leva de meninas novas e ele poderia trepar e beber à vontade. Não teve jeito, Salvador tomou seu assento no velho Opala e pegou a estrada, sumindo pelo mundo.

3

LUCY ANNE VOLTARA à cidade. Seu temperamento era irrequieto e a doidivanas não suportou o bucolismo da selva. Além disso, a idiota adorava a estúpida Festa do Texas, da qual participava, devidamente fantasiada, presente a todos os eventos, tocando bateria, sanfona e gaita de boca. Não queria, de jeito nenhum, perder a próxima.

Contou que o buraco no meio do mato onde morou com Infâmia durante aquele tempo abrigava um verdadeiro zoológico, bichos soltos e aprisionados, bípedes e quadrúpedes selvagens, tais como quatis fedorentos, macacos, tatus e bichos-preguiça. E domésticos como gatos e cachorros, mais cabras, bodes, porcos, parvas galinhas e uma égua. Alguns repulsivos, como ratos e ratazanas, répteis e sáurios, insetos rasteiros e voantes, além de outros bichos, dos mais vulgares aos mais exóticos e igualmente repelentes, como bichos-de-parede, bichos-de-conta, bichos-de-farinha, bichos-de-pau, bichos-de-pé e uma infinidade de outros bichos. Mas não contou que plantavam maconha, e que não era apenas para consumo particular e doméstico.

Nessa época, o ferimento já cicatrizado e Saulo – o capão – livre de perigo, Laurinha e o marido foram consultar sir George, em busca de um lenitivo para suportar tamanho trauma sexual e psicológico. Com sábias e confortadoras palavras, o psiquiatra convenceu o casal a não perder as esperanças. Quem sabe, no futuro, com todo o progresso da medicina, fosse possível um transplante de pinto. Até lá a barriga de Laurinha teria folga por um bom tempo, livre de gestações e, quanto à atividade sexual, restava a opção de um moderno consolo.

Essa última sugestão causou grande alegria a Laurinha, que gostava muito de uma sacanagem, mas não desejava ter filho nenhum. No entanto, causou profunda decepção ao marido, que sempre desejou ser pai de uma prole numerosa e para o qual um consolo talvez não fosse de muita serventia.

Quanto a Cornélia, uma vez concluído o tratamento, além de parar de vez com a bebida, a moça – de tanto rezar, comer mal e tomar porrada – se tornou religiosa e entrou para um convento como noviça. E ela que, como puta, jamais tivera um nome de guerra, pretendia adotar, quando vestisse o hábito, o de Irmã Madalena, em honra à bíblica pecadora.

Chamoun, de uma penada só, arquivou aquele maldito, complicado e incômodo caso do assassinato de Polaquinha, que tanto tempo lhe havia tomado. Não fizera mais nada a não ser cuidar dele e a única coisa meritória que restou na sua folha de serviços foi a limpeza feita no sórdido Bar e Pastelaria Pontual. Depois disso, continuou a fazer nada, a não ser beber uísque, nos bares e no bordel, agora administrado por Hermengarda e a berrar com o seu auxiliar, o paciente Joboatão.

Mas este já estava com o saco cheio das gritarias do delegado.

Um belo dia, após um dos costumeiros esporros de Chamoun, o auxiliar se postou à sua frente e lhe entregou um envelope.

Foi quando se ouviu o barulho.

Começou com um leve estrépito, depois mais forte, intermitente, como um motor de popa rateando para pegar, e então embalou.

O barulho se tornou um som musicado, com tons relativos, maiores e menores, com o mesmo número de sustenidos e bemóis se sucedendo diatonicamente, sem acidentes de escala, notas inteiras e colcheias, a altura subindo e depois descendo, em doce harmonia, de maneira extremamente agradável ao ouvido, até se extinguir totalmente com um assobio.

Tinha sido um formidável flato de longa duração.

O último detonado por Joboatão nas dependências do próprio estadual, a delegacia, pois dentro do envelope estava a sua carta de demissão.

Apavorado com a magnitude do flato, Chamoun berrou:

– Daniello, apague o cigarro, abra logo todas as janelas!

4

O EX-POLICIAL PASSOU A TRABALHAR direto na oficina com Epaminondas, o grego, proprietário de uma oficina mecânica. O protótipo do motor a peido estava pronto e precisava ser testado pela última vez, antes de ser comercializado, depois de alguns importantes aprimoramentos feitos.

Chamoun que, apesar de tudo, mantinha simpatia pelo antigo auxiliar, cedeu a viatura para o teste. Se aprovado o motor, já instalado no veículo, seria de enorme valia para os cofres públicos, pois o combustível era barato, renovável, e o suprimento fácil. Os aprimoramentos consistiam em permitir que o motor, mediante a simples inversão de uma chave, trabalhasse tanto com o novo combustível natural e renovável como com gasolina. Isto era necessário, uma vez que a fonte de abastecimento era única, embora nada impedisse que se carregasse na caçamba alguns botijões extras, no caso de incursões policiais mais demoradas e com maior raio de ação. O primeiro botijão de combustível não estava completo, faltando uma ou duas emissões gasosas para isso, e Joboatão tratou de o fazer naquela hora, diante dos convidados presentes, o prefeito, o delegado e o advogado Cidineide e, é claro, Chamoun, que tinha trazido Daniello e o escrivão.

Joboatão ajustou o olho do rabo na boca do cilindro e emitiu um flato sobrenatural, o qual superou todos os outros anteriormente já disparados, tanto em potência quanto em duração.

Foi um desastre.

O flato, de uma força devastadora, arrebentou a válvula de segurança do botijão, atirando os pedaços para todo lado, e os gases se espalharam pelo ar, numa onda de fedor insuportável. A energia desprendida se transformou em calor intenso, infernal. A platéia ilustre se apavorou, castigados os ouvidos pelo barulho do estrondo, os narizes pela fedentina insuportável e o resto do corpo pela temperatura elevada.

Mas isso não foi tudo.

No exato momento em que o petardo foi deflagrado, Daniello acendia um cigarro. Os gases, altamente combustíveis, inflamaram-se no mesmo instante, em forma de enormes labaredas.

Uma vez liberada a primeira onda, Joboatão, apesar de muito treinamento, não conseguia mais deter as seguintes, ficando sem controle das emissões, que se sucediam com violência. Suas calças pegaram fogo e ele correu para o pátio de lavagem de carros em busca de água, parecendo um cometa, a cauda flamejante espalhando chamas por toda a oficina, incinerando maços de estopa, lixas, latas de óleo e tintas, papéis e todo e qualquer material combustível que se encontrasse no seu rastro.

Cidineide foi atingido no saco e berrava desesperado, as calças feitas sob medida no alfaiate também em chamas. Daniello correu para fora da oficina, gritando pelos bombeiros. Epaminondas foi mais objetivo e apanhou o extintor da parede.

Mas não funcionava, estava descarregado. O incidente só não se transformou em tragédia porque Joboatão alcançou a tempo o pátio de lavagem e se enfiou debaixo da ducha forte, usada para lavar os carros. Os estertores finais dos flatos sucessivos aconteceram debaixo d'água, sem causar maiores danos, a cauda flamejante já extinta e sem perigo.

O início de incêndio na oficina foi dominado, finalmente, com o auxílio de uns panos velhos que Penélope, mulher de Epaminondas, usava na limpeza da casa.

O ilustre advogado Cidineide Mourão foi levado para a Santa Casa e medicado a tempo, mas ficou com a vara bastante danificada, prestando-se apenas para urinar, ficando por um bom tempo sem utilidade para outras atividades afins.

Chamoun desistiu de deixar a viatura para testes futuros, e muito menos para a equipar definitivamente com o novo motor, diante da certeza absoluta de que o combustível natural, fornecido pelos intestinos de Joboatão, era de extrema periculosidade.

5

APESAR DO INCIDENTE APAVORANTE que, na época, quase levou o saco de Cidineide Mourão para o inferno, o ex-policial tornara-se sócio de Epaminondas e os dois continuaram a desenvolver o motor revolucionário.

O problema não era no motor e sim, como ficou óbvio, no processo de carregamento do botijão. Depois de muita pesquisa científica, principalmente através de artigos publicados nas eruditas Seleções do Reader's Digest, Epaminondas – que era homem bem informado também por outras mídias especializadas, como antigas edições da revista Mecânica Popular –, construiu uma válvula absolutamente segura, usando titânio e outros materiais empregados pela NASA. Por mais violento que fosse o disparo, o engarrafamento era feito com a máxima segurança, sem nenhum perigo para pintos e sacos próximos ao local.

E tinha que ser assim, um processo absolutamente seguro, pois Joboatão, para incrementar a produção e obter maior poder calorífico do combustível, submetia-se a uma dieta constituída especificamente de ovos cozidos, repolho e batata doce, o que tornava suas emissões mais potentes, violentas e perigosas demais.

A carga dos botijões agora era feita numa câmara hermética, com paredes de chumbo, à prova de fogo e radiação. O ar era altamente rarefeito e o provedor necessitava usar balões de oxigênio para respirar e, por via das dúvidas, ninguém podia estar presente no momento da operação.

Quanto ao manuseio dos botijões não havia problema maior, bastando tomar os cuidados habituais que se deve ter com relação a qualquer gás combustível.

Recomendava-se, contudo, e isto vinha escrito no recipiente, não fumar e usar máscara contra gases na hora de o substituir o botijão.

Quase metade dos carros que circulavam na cidade já usava o motor – não era necessário substituir o original, apenas o adaptar –, sendo que os ônibus municipais e os veículos da prefeitura em sua totalidade. Muitos consumidores vinham de fora e, se não havia problema para Epaminondas, havia, e muito, para o sócio responsável pela produção do combustível.

Joboatão já estava pesando mais de 120 quilos, grande parte concentrada na barriga volumosa, e consumia diariamente vários tubos de Hipoglós para aplacar as ardências no rabo. Isso sem contar que hemorróidas já estavam despontando. Não fazia mais nada a não ser comer – só ovo cozido, repolho e batata-doce – e peidar, mesmo assim já não mais dando conta da demanda.

Os sócios precisaram buscar uma solução alternativa para a produção do combustível e a única que encontraram foi adquirir flatos de terceiros. Mas estes nem de longe possuíam o poder calorífico do original e eram produzidos em volume muito pequeno, eram flatos de potência e duração normais, comuns e de pouco aproveitamento.

Para enriquecer o produto alternativo, acrescentavam aditivos que melhoravam a octanagem, mas, mesmo assim, a eficiência era baixa, comparada aos flatos de Joboatão. Passaram a comercializar duas categorias de combustível: o extra, produzido a partir dos flatos do ex-policial, e o comum, obtido através de flatos de terceiros. Diariamente, desde às cinco horas da manhã até às oito da noite, uma extensa fila de fornecedores se formava diante da oficina, onde se expunha a placa com os dizeres:

COMPRAMOS PEIDOS – PAGAMOS BEM

Foi preciso ampliar o pátio de engarrafamento, embora não necessárias câmaras especiais, como a usada por Joboatão, pois os flatos adquiridos de terceiros não ofereciam perigo maior.

Verificou-se um progresso notável para a economia da região.

Uma infinidade de desempregados, aposentados e uma grande parte da população de baixa renda descobriu, no fornecimento de flatos, uma fonte de renda considerável. Por outro lado, os mercados e as feiras livres aumentaram em muito a venda de repolho, batata-doce e outras matérias primas essenciais. A horticultura cresceu bastante e também aumentou o número de granjas, pois o ovo cozido de galinha também constituía ótima fonte de gases naturais combustíveis.

Pequenos problemas sociais começaram a surgir: os mendigos passaram a não aceitar mais qualquer tipo de comida, exigindo, inclusive em barulhentas passeatas, que lhe fossem dados alimentos com elevada capacidade de fermentação e se recusavam a tomar pinga, só aceitando ofertas de cerveja nos botecos da cidade. Mas, diante do inegável ganho econômico em diversas áreas, eram problemas de pouca importância e perfeitamente contornáveis. Mas, finalmente, todos foram superados, graças à ajuda do progressista e eficiente prefeito do PT, Dante Zunindo, com a circulação de enormes malas valerianas carregadas de dinheiro, tornando a empresa Epaminondas & Joboatão numa das mais prósperas do país.

O advogado Cidineide Mourão, depois de restabelecido, pôde freqüentar livremente o bordel, bebendo e aprontando formidáveis sacanagens com Hermengarda, sua amásia e nova proprietária do Palácio.

Chegava todo arrogante no vistoso Lada vermelho, comprado depois de aposentar o obsoleto Volkswagen branco. Aposentara também o surrado terno azul-marinho e comprara vários de linho, branco ou bege claro – tecido fora de moda e que quase não existia mais –, mas nos quais as caspas não apareciam tanto.

De quebra, passou a pintar de acaju os desalinhados cabelos e bigodes brancos, bem penteados e assentados com gel e laquê, mais parecendo um veado rico, mas isso durou pouco.

Não demorou dois anos e passou a morar no Asilo São Vicente de Paulo. Não que tivesse ficado tão velho assim, mas os excessos sexuais – e, também, o aberrante consumo de cachaça e cigarro – se fizeram sentir na cabeça degenerada e no corpo já desgastado pelas farras da juventude.

Mas os caprichos do destino o faziam viver, mesmo assim, melhor do que antes de conhecer Hermengarda. Com o dinheiro, legado por madame Perugina, o asilo passara por uma bela reforma e o tratamento dispensado aos moradores era excelente, a comida boa e farta.

Estava tomando chá na cadeira de balanço, dado na boca justamente pela diáfana e pura Irmã Madalena, antes a desvairada, bêbada e puta Cornélia, quando a nova dona do bordel chegou, bem na hora em que a religiosa lhe afagava o pinto murcho e preguiçosamente caído fora da calça.

– Porra, Cornélia! –, disse Hermengarda. – Pensei que tinha tomado jeito na vida. Como uma freira pode fazer uma coisa dessas?

– Que coisa? E não sou mais Cornélia, mas Madalena.

– Ficar pegando no pinto do Cidineide!

– É uma caridade, ele gosta e fica feliz.

O rábula riu desavergonhado, mostrando os poucos dentes sujos, amarelados de nicotina. Da boca de lábios gosmentos saíram uns guinchos de morcego, espalhando uma onda de mau hálito, mistura de gases estomacais, nicotina e álcool – provavelmente Cornélia, ou melhor, Irmã Madalena, o supria de alguma bebida, ou, então, o safado subornava algum enfermeiro para lhe trazer cigarros e cachaça.

Expeliu um flato sonoro e fedorento antes da amásia se despedir e acabou por se cagar na calça, emporcalhando a cadeira de balanço.

Hermengarda o visitava sempre, mas ele definhava, estava quase caduco e já nem a reconhecia direito, mas ela ia todo o santo mês e aproveitava para pagar a mensalidade pessoalmente. Preferia que fosse assim, para que ninguém, ou só alguns poucos, ficassem sabendo que era ela quem garantia a subsistência do rábula.

Depois da visita, como sempre fazia, passava na capela do asilo e agradecia pela sorte com a qual o Senhor a tinha agraciado e retornava ao Palácio, onde imperava absoluta, cortejada pelas meninas e fregueses.