ESTADO DE SÍTIO

Estamos sitiados em nossos redutos. As armas dos inimigos são de grosso calibre e os carros de combate fazem passeio no pátio. Restam-nos poucos combatentes. São leais, mas estão extenuados. O esforço tem sido enorme. Fome e frio tornaram-nos farrapos.

No entanto, resistimos às assacadilhas de um adversário que quer tornar a nossa liberdade uma camisa-de-força. Mais do que nunca é preciso que arrebentemos os grilhões desta Bastilha. Somente o sonho de uma Pátria Livre nos motiva. Nem há poder para administrar. Poder presente ou futuro.

Nossas linhas são condores que vagueiam à espera do milagre. O Brasil não é isto. Um sítio permanente se faz com idéias, não com armas. Mas as bocas-de-fogo na televisão, nos jornais, no rádio, fazem-nos um desolador quadro de perdedores.

— Até quando lutaremos?

Enquanto isso ocorre, dolarizamos a nossa fraca economia, e os gigantes trôpegos de outras paragens formam filas para abocanhar o que resta.

A libra, o marco, o dólar, os ienes estão chegando, diz o primeiro Calabar. Logo, logo chegarão os outros. E farão festa sobre os frangalhos que resistem.

— Calabares, Joaquins Silvérios que se fodam! São imprecações comuns que se ouvem na trincheira infecta de ratos. Aliás, estes bichanos valem, agora, mais do que os cinco francos que custavam na Linha Maginot, durante a Segunda Guerra Mundial.

E a maçã podre fermentou a revolta.

— Somos poucos, grita um combatente ensangüentado! Ouço vozes impossíveis de distinguir. Há uma balbúrdia lá fora.

A noite chega e, amanhã serão milhares sobre nós.

Tento dormir, extenuado, boca e estômago secos.

— O real será a salvação! E milhares de calabares fazem coro.

...

Um anjo negro, lívido de pânico, me desperta de um sono agitado. Uma criança, filha de um desempregado, traz uma bandeira branca. O olor de gás mostarda entra pelas ventas. Não deixa respirar e afrouxa o intestino.

Dois dias depois, os abutres fazem o resto. Pás carregadores são imensas bocas nos possantes caminhões. Carregam os corpos para covas rasas.

Não há cruzes neste campo santo.

– Do livro O HÁLITO DAS PALAVRAS, 2004/2010.

http://www.recantodasletras.com.br/contosinsolitos/952922