Meu encontro com um vampiro
>> No ano de 1980 eu morava em São Paulo, a cidade das oportunidades e dos acontecimentos. Nem mesmo todos os jornais escritos e os tele-jornais de todas as emissoras, se noticiassem apenas os acontecimentos noturnos daquela cidade, ainda assim não seriam suficientes para informar com precisão todos os eventos. Acredite, a vida noturna de uma metrópole é um universo paralelo de fatos sombrios, sangrentos e alguns mesmo repugnantes. Fui protagonista de uma dessas aventuras, um destes acontecimentos que a maioria das pessoas não acreditaria, nem faço questão disso, basta que eu possa dividir minha experiência. Já é bastante confortante ter para quem relatar, seria muito exigir crédito nesta narrativa. Contento-me em desabafar e diverti-los. Boa leitura.
Eu morava no conhecido bairro de Santo Amaro, lado sul da cidade, e a noite sempre gostava de sair, explorar a cidade e sua vida noturna. Conhecer pessoas e lugares diferentes, de preferência exóticas e com algo a mais a oferecer. Nunca gostei muito do normal e do igual, tenho preferência pelo diferente o surpreendente e inusitado. Foi procurando isso que numa noite de sexta feira, por coincidência era uma sexta 13, data que reverencia antigas lendas e mexe com o imaginário popular, eu sai de casa disposto a virar a noite na rua, nos bares, inferninhos e cabarés, saciar minha sede de bebida, mulheres e aventuras. Eu era assim naquele tempo.
Peguei o carro, era um velho e bem conservado Maverick V-8, uma raridade de quatro portas, preto cintilante com detalhes em prata, bancos de couro, todo original. Desci no sentido centro, pois é nos antigos becos que fervem os mais diversos locais de diversões, alguns disfarçados, que só quem sabe, ou foi indicado consegue identificar. Parei numa travessa próxima a Rua Augusta, região de gays, lésbicas, homossexuais, prostitutas, drogas e rock-in-roll. Eu estava em meio ao diferente, o comum e normal havia ficado para trás. Eu estava onde eu queria.
Olhei atentamente as muitas plaquetas discretas, e outras chamativas onde anunciavam show de strip-tease, massagens, sexo ao vivo, swing e tudo o mais que uma exigente criatura da noite pudesse desejar. Caminhei devagar meio sem rumo em meio a mendigos e prostitutas. Procurava um lugar, um cantinho onde eu pudesse apreciar uma bela mulher dançar pelada e eu pudesse sem ser incomodado pelos muitos bêbados e tarados da noite ficar olhando, bebendo meu vinho e fumando meu charuto barato, com ar de importante ou de misterioso. Entrei em um beco que poucos o escolheriam como ambiente para se divertirem e me dirigi a uma discreta porta de ferro enferrujada encravada em um muro de tijolos a vista pretos de fuligem da fumaça diurna dos veículos e das chaminés de fabricas vizinhas. Fui barrado logo na chegada por dois brutamontes que saíram das sombras como por encanto. Revistaram-me, anotaram meu nome e idade e tiraram uma foto com uma Polaroid velha (com minha permissão, é claro). Paguei uma taxa de visita e entrei. O ambiente era pequeno e mal iluminado. Poucas mesas de ferro pintadas de preto se confundiam com o piso de cor escura. Havia muita fumaça de cigarros comuns, charutos baratos tipo o meu, fumaça de incenso e de maconha. Na passagem do que vou chamar de corredor das surpresas, uma estreita passagem entre as fileiras de mesas, fui abordado por várias figuras grotescas, outras sensuais demais para aquele lugar. Sentia mãos ágeis e exploradoras no meu peito, pescoço e órgão sexual. Antes mesmo de chegar ao fim do corredor já havia me decidido voltar, quando olhei lá para frente ou fundo do ambiente e vi umas mesas sem ninguém, bem perto do pequeno palco forrado de veludo vermelho com uma haste de ferro tubular niquelada, onde uma loirinha muito jovem dançava já sem roupa. Apressei-me a chegar a mesa do canto que ficava um pouco mais na penumbra do ambiente.
Sentei-me ali, e antes mesmo que eu fizesse qualquer sinal ou esboçasse qualquer indicação para ser atendido, uma jovem vestindo apenas uma saia muito curta que deixava suas belas nádegas de fora, com seios fartos a amostra e um sorriso falso nos lábios carnudos e mal pintado de um vermelho extravagante, já se aproximava de caderninho nas mãos delicadas e maltratadas. Pedi uma garrafa de vinho sem dizer que vinho, que ano ou região, pois não adiantaria nada disso, viria o de sempre, um vinho forte, encorpado, mal fermentado e com teor alcoólico semelhante a mais barata das cachaças. Pedi-lhe para trocar o pesado cinzeiro de ferro que ainda fumegava com uma grossa e mal cheirosa tora de charuto. A mocinha apenas entornou o talo do charuto junto com as cinzas embaixo da mesa e pisou na brasa com sua sandália de trançado canela acima, tão desgastada quanto suas unhas que fiz questão de observar. Saiu rebolando enquanto minha imaginação dava voltas e rodeios ao olhá-la se afastando. Minha atenção foi desviada pelas palmas e gritos acompanhados de desabafos grotescos proferidos como elogios a jovem dançarina que terminara seu número, nua em pelos, ou em carne já que estava mais do que depilada. Eu aguardava minha bebida calmamente enquanto ouvia um blues do bom e velho B.B.King, sim, por incrível que pareça é mais fácil você ouvir boa música em ambientes assim que nos bares comuns das avenidas lotadas de placas reluzentes, carros importados e mulheres bem vestidas e elegantes acompanhadas de homens bem trajados e com ar de magnatas. No fundo não são muito diferentes dos homens e das mulheres do ambiente onde eu estava. As duas classes buscavam em ambientes diferentes refugio para suas mazelas, consolo para suas frustrações, prazeres para suas rotinas e surpresas para suas vidas. Uma nova atração era anunciada por uma espécie de mestre de cerimônias, uma atarracada figura de fraque e cartola mais parecendo ter saído de um circo dos horrores, o que não estava muito distante de tudo aquilo. Um som como de gaitas de fole escocesas encheu o ambiente uma tímida figura feminina muito esguia caminhou até o centro do palco. Vestia uma espécie de macacão de cor preta reluzente ou de semi-brilho, cheio de fivelas, zíperes e ilhós. Uma capa negra com capuz lhe cobria os ombros estreitos e a cabeça. Tinha botas negras, brilhantes e de canos longos, com saltos muito altos e finos. Começou uma dança meio que sem muita empolgação, e mesmo quase sem nenhuma sensualidade, o que fez com que o barulho no ambiente aumentasse devido a pouca ou quase nenhuma atenção dada à nova atração, anunciada como "Vladeska, A mulher vampira". Ao som das gaitas de fole a capa foi tirada sem pressa, revelando um rosto magro e extremamente pálido. O cabelo aloirado e meio encaracolado lhe caia aos ombros emoldurando seu pálido rosto. Devagar e com perfeita harmonia entre a melodia e seus movimentos ela desatou cadarços, puxou zíperes e desabotoou ilhós e fivelas, livrando-se das roupas e ficando só de calcinha, botas e soutien. Tinha a pele delicada e muita alva, branca, de um pálido quase transparente que lhe realçava os finos vasos azulados como se fossem finas e trabalhadas tatuagens por sob a pele, uma obra impossível na realidade. Os presentes pouca ou nenhuma atenção lhe dispensavam. Seus seios pequenos, suas nádegas sem grandes proporções e suas coxas finas não lhes despertavam a libido e os desejos fantasiosos, desde os mais sórdidos aos mais inocentes. Mas eu me fiz ver entre as mesas na penumbra. Tossi, acendi mais de uma vez o mesmo charuto e por fim derrubei um copo até que seu olhar lânguido me alcançasse, e alcançou. Foi o bastante pra que eu lhe fizesse um discreto sinal. No fim de sua apresentação, sob os poucos aplausos misturados a impropérios, ela retirou-se, deixando no palco suas vestes, inclusive as botas, a minúscula calcinha e o pequeno soutien. Já havia se passado quase meia hora e eu já estava na minha terceira garrafa de vinho. Duas toras de charuto queimado adornavam o pesado cinzeiro. Uma cortina vermelha púrpura abriu-se lá no fundo, na lateral do pequeno palco e ela saiu, caminhando na direção de minha mesa. Vestia uma espécie de túnica longa pregueada na altura da cintura e dos ombros, calçando sandálias simples e sem salto. O cabelo estava solto e emoldurava-lhe o rosto com a suavidade de uma brisa sob a prata da lua. Levantei-me, e estendi-lhe a mão conduzindo-a a cadeira de ferro desconfortável ao lado da minha. Sua mão tinha o toque da seda e a frieza do mármore. Seus olhos grandes e tristes me olhavam profundamente como a observar minha alma. Seu sorriso discreto não passava de uma simples e imperceptível contração de lábios. _O que você quer beber? Perguntei timidamente, e não sei o porquê de minha timidez. _Vinho. Disse ela num fio de voz, doce e suave, que se perdeu entre as palmas e a gritaria dos presentes para a morena que acabava de entrar semi-nua no palco. Servi-lhe uma generosa taça de vinho, que ela olhou com satisfação contra a luz da parede. O reflexo da luz no líquido púrpura sanguíneo atravessava o vidro e desenhava formas imprecisas sob a palidez de seu rosto, criando uma expressão fantasmagórica. Sorveu o líquido devagar mais continuamente até que não restasse mais nada na taça. Seus lábios coraram adquirindo um rosado suave. Tornei a servi-lhe enquanto me apresentava. Minhas palavras pareciam não ter a menor importância. Foi quando resolvi aproveitar do momento para satisfazer minha curiosidade sobre ela. _Seu nome artístico é interessante, muito sugestivo, tanto quando o número que você apresentou. _É meu nome. Disse sorvendo um gole de sua segunda taça. _Você é de onde? Perguntei de repente. _De uma vila ao sul da Escócia. Mas fui trazida pra cá ainda menina. Ri, e disse. _Mas você ainda é uma menina. Foi quando vi seu sorriso pela primeira vez, pois o de antes não passara de um gesto labial discreto, e com ar de quem sabe mais do que revela disse entre um sorriso e outro. _Você não acreditaria se eu lhe dissesse minha idade. E completou. _Não insista, por favor. Respeitei seu mistério, afinal isso era até interessante. Na tentativa de manter a conversa até que me sentisse encorajado para convidá-la a sair, ir para um lugar menos movimentado, enfim revelar minha intenção e desejo comentei. _Você é diferente. _Todos somos. Foi sua resposta descontraída enquanto tomava seu terceiro gole de vinho. Eu quis concertar o comentário, mas fui calado pelo seu olhar penetrante e sua mão fria sobre a minha. _Me leva daqui. _Co...Com...Como? Gaguejei meio sem jeito e sem entender muito bem o que ela me pedia. Meio que sorrindo de minha reação ela completou. _Não é nada disso, só quero sair, tomar o ar da noite e caminhar livre. E completou com voz entrecortada. _Ou pelo menos ter essa sensação. Apresei-me em pagar a conta e o cachê por estar saindo com ela. Ao passar por entre as mesas era como se não estivéssemos ali. Todos estavam muito ocupados para nos observar. Na saída fui gentilmente induzido a dar um cachê aos dois leões de chácara que guardavam a porta. _Meu carro está estacionado na rua à esquerda. _Não, não, por favor vamos caminhar um pouco. Caminhamos na noite fria sob as luzes cintilantes das ruas quase desertas do centro. Eu a observava. Ela andava levemente, quase que flutuava tão leve que eram seus passos sob a calçada úmida do sereno da madrugada. Uma placa reluzia ao longe a palavra "Motel". Parei segurando-lhe a mão. _Eu gostaria muito de estar mais a vontade com você. Quem sabe dormirmos um pouco, descansar, e principalmente sairmos da rua e do sereno. Ela me olhou demoradamente, e como se já tivesse visto a placa, ou quem sabe já conhecia o lugar e esse passeio era parte de sua rotina com seus clientes, virou a cabeça devagar na direção do nome motel. Sorrimos e andamos mais apressados. Apos o pagamento e a formalidade de praxe nesses lugares. Subimos uma escadaria e caminhamos abraçados por um corredor cheio de portas. _013. É esse nosso quarto. Pedi vinho, queijo, cigarro, água e alguns chocolates.
Ela estava em pé, curvada sobre a mesinha de cabeceira, colocando vinho em nossas taças. Aproximei-me devagar, por traz, quase sorrateiramente. Abracei-a de forma que ela pudesse sentir meu desejo. Ela virou-se devagar, roçando seu corpo magro contra o meu até ficar de frente, colada em mim e abraçar-me quase que com doçura e timidez. _Beije-me. Eu disse. Sua cabeça balançou numa negativa suave e demorada enquanto sua voz saia calma e controlada, quase como numa advertência. _Não, não posso fazer isso. Ora, eu era um freqüentador da noite, e já sabia da relutância das "damas da noite" em beijar os seus clientes. Isso as protegia de certa forma a não se envolverem emocionalmente e nem desenvolverem laços afetivos e amorosos com pessoas que apenas as queriam por um momento. E quis fazê-la entender isso. _Eu sei que vocês não gostam de beijar seus clientes. Ela afastou-se um pouco sem tirar os braços do meu pescoço. _Você agora a pouco disse que eu era diferente, não me torne agora igual a ninguém. Seu olhar era doce e ao mesmo tempo cruel, impedindo-me de dizer fosse o que fosse. Aproximou-se até colar-se a mim novamente. _Você também, é diferente, e continuará assim, pois não vou beijá-lo. Isso o tornaria igual a mim, e acredite... Fez uma pausa que tomei como proposital. _Vontade não me falta, mas não posso e não quero, mas você pode me beijar se realmente quiser isso, me deixará muito feliz. Eu ri sem entender a diferença em eu beijá-la ou ser beijado por ela. Mas seus olhos se fecharam, seu corpo colou-se mais ainda ao meu, sua boca entreaberta e sua cabeça levemente inclinada não me deixavam ficar cogitando essa diferença agora sem a menor importância.
Lentamente ela me conduzia, até cairmos um sobre o outro na cama de lençóis bem passados. Olhou-me com ar de cumplicidade, e com o fino dedo sobre os lábios fez sinal de silêncio, enquanto saia e caminhava na direção do banheiro. Fiquei ali, ouvindo a água cair sobre seu corpo e tomando vinho. Ainda pensei em ir ao seu encontro mas aguardei impaciente sua volta. Eu já estava só de cueca, deitado, pernas esticadas e cruzadas. Nas mãos uma taça de vinho pela metade e um cigarro que acabara de acender, olhando os desenhos do espelho no teto. _Sua vez. A voz me despertou do transe, e a olhei curioso. Seu cabelo estava preto e não parecia mais cacheado. Percebendo meu ar interrogativo ela comentou me jogando uma toalha e rindo, enquanto permanecia enrolada na sua. _Ora vamos, você já está bem grandinho pra conhecer e saber dos milagres da tecnologia estética. Num minuto podemos ser loiras, ruivas e noutro podemos ser morena. Mas apesar de branca, muuuuito branca (e mostrou as coxas finas de antes puxando um pouco à toalha de lado e rindo), sou assim mesmo, meu cabelo é preto e sem tintura. E rindo com ar de mistério, completou. _Apesar da idade.
Meu banho foi relâmpago. E voltei a tempo de sorvermos na mesma taça o restante do vinho. Envolvemos-nos como dois amantes apaixonados e sem pressa.
O dia nos pegou dormindo. E acordei com os primeiros clarões do sol entrando pela janela do terceiro andar do nosso quarto. Ela dormia com a cabeça sobre meu peito. E ao primeiro movimento meu ela abriu os olhos e de um salto ágil e repentino correu a fechar a cortina. _Que foi que foi? Calma! E antes mesmo que eu dissesse mais alguma coisa ela riu delicada. O sol, até gosto mais não posso. _O que, você não pode tomar sol? _Isso mesmo. Minha pele é muito sensível aos raios do sol, e meus olhos são sensíveis à luz. Novamente deitada sobre meu peito ela parecia uma criança assustada, mais mantinha o controle. Lembrando-me de como o homem atarracado havia apresentado ela no palco da casa noturna arrisquei um comentário. _Não está levando muito a sério seu personagem no número que representa no palco? _Não sou um personagem, sou real. Personagem é o que vocês criaram ao longo do tempo. _Do que você está falando? Perguntei. _Do mesmo que você. _Quer que eu acredite que é uma vampira? _Não, quero que acredite que sou humana, e que o vampirismo é apenas uma doença que podemos manter sobre controle, como o diabetes, por exemplo. _Pare com isso, você não é uma vampira e posso provar isso. Apontei para o teto e lhe mostrei seu reflexo no espelho. Ela riu dando de ombros com ar interrogativo. _Isso é normal, as pessoas são refletidas nos espelhos, e sob a luz todas as pessoas projetam sombra. Você esperava que eu não aparecesse no espelho ou que não tivesse uma sombra? Disse rindo muito como se aquilo fosse uma piada. _Posso ser e ter minhas diferenças, mas em muitas coisas somos iguais, eu e você. E apontou para o teto mostrando nossos corpos nus refletidos. Alisando seus cabelos perguntei em tom de sarcasmo. _Você tem um caixão com areia da Transilvânia aqui nesse quarto ou devo pedir um? _Acredita mesmo nisso? Que dormimos em caixões e que viramos morcegos? Você me parece muito inteligente para acreditar nessas lendas. Disse com ar de seriedade. Mas completou entre risos debochados. _Em todo caso peça uma trança de alho pelo interfone, e bote em torno do seu lindo pescoçinho. E me beliscou a coxa. Ri, e fiz um desafio. _Vamos até a janela e bote a mão no sol. Olhou-me séria como se não acreditasse nas minhas palavras. _Espera ver minha mão queimando sob os raios do sol? Isso é um processo lento, embora seja em parte verdade. Não queimamos feito bruxas nem derretemos ao sol feito velas ao fogo, mais sim sofremos mil vezes mais os resultados posteriores de uma pele sensível sob exposição demasiada ao sol. Isso nos faz envelhecer muito rápido, descamar, perder a pele que nasce cada vez mais frágil e doente. Mais não é o mesmo que acontece com todos? Só que mais lentamente. Graças a tecnologia dos cremes hidratantes e dos protetores solar, nós, os diferentes portadores do vampirismo, devidamente vestidos e protegidos podemos até sair durante o dia, os óculos escuros nos da o conforto da noite, pois nossos olhos devido a doença são extremamente sensíveis a luz. E com jeito de aborrecida completou. _E isso nada tem a ver com maldição dos infernos, ou seus albinos seriam todos criaturas infernais e demoníacas. E desabou a rir sobre meu peito. _Acredita mesmo que é uma vampira, e quer que eu acredite nisso também não é mesmo? _Não dependo de que você acredite, tenho mais de 70 anos de vida que me provam o que sou, mas, infelizmente não posso e não preciso te provar nada. _Você tem 70 anos? Perguntei sério e admirado. Já me dando conta de que estava entrando no jogo dela. _Mais, mas parei de contar faz alguns anos, não tenho mais certeza de minha idade. É melhor assim, esquecer e deixar o tempo passar. _Então a lenda de que os vampiros permanecem no mesmo estado físico de quando foram mordidos é verdadeira? _Não, não é. Nós envelhecemos sim só que num ritmo muito mais lento que o normal. Mas porque a surpresa ou a dúvida? Não há uma doença rara em que a velhice é extremamente precoce? Porque não haveria uma em que ela possa ser extremamente retardatária? Envelhecemos mais rápido se não nos cuidamos, se tomamos sol, o que evitamos, pois é insuportável depois de algum tempo, é como fogo, queima e dói muito alem de deixar cicatrizes nos deformando a pele. _Meu Deus você está me convencendo. Sua fantasia, ou seja, lá o que for está me afetando. Fantasia e lenda são o que vocês criaram em torno de nossa verdade e realidade. Não somos seres demoníacos nem monstros do inferno, sofremos de uma doença. Mas não faz muito tempo seus leprosos e epiléticos eram considerados criaturas possuídas pelos demônios não é mesmo? E rio descontraída. Devagar e não acreditando no que eu estava fazendo leve a mão ao pescoço tentando encontrar marcas de mordidas. Vladeska percebeu o meu gesto e desabou a rir. Você foi todo mordido meu amor, e não foi só no pescoço. Disse rindo e levando a mão as minhas nádegas. _Aqui principalmente. Disse com ar sensual. Você me mordeu? Quero dizer pra valer mesmo? Isso é... De verdade? Claro e alguém morde de mentira? E levantou o lábio superior exibindo os dentes perfeitos. _Agora se está me perguntando se furei teu pescoço com as presas pontiagudas de sua imaginação e bebi seu sangue, aí posso lhe garantir que não. _Então vocês não tem presas pontiagudas e não bebem sangue? Perguntei cada vez mais envolvido na história. _Temos presas maiores que o normal, mas no formato natural de uma presa, e não os dentes de lobos com os quais vocês alimentam as fantasias cinematográficas e a literatura. Mas isso não é nada comparado as várias doenças que atestam o aumento de órgãos entre vocês, coração grande, por exemplo, amoplata, clavícula e outros ossos. Por que um aumento quase imperceptível de nossos dentes haveria de ser uma aberração? _Como você pegou essa doença? Perguntei realmente interessado. Não quero falar sobre isso, não sobre eu especificamente, mas posso dizer da doença, de como se contrai. Suas lendas sobre nós não são de todo besteiras e nem mentiras sem nenhum fundamento. Foram ao longo do tempo ficando exageradas e fantasiosas, mas tem lá umas verdades de fundo. Não viramos morcegos, mas foi de uma espécie de morcego já há muito tempo extinto que o primeiro de nós contraiu a doença. Isso foi há centenas de anos, por isso a lenda do vampiro está registrada em muitas culturas antigas. O pobre infeliz que foi mordido por esse animal, por ter sido o primeiro de que temos registro não sabia se cuidar, e os poucos recursos de conhecimento científico da época não lhe proporcionaram nenhuma melhora ou cura. Ele e outros como ele iam enfraquecendo, definhando numa palidez e magreza cadavérica. A reclusão e discriminação ajudaram a matá-los. Como hoje, eram consideradas criaturas possuídas pelo demônio. Isolados e até sacrificados, tendo suas cabeças decepadas do corpo, ou estacas enterradas no coração. Morriam aos montes enclausurados em gaiolas expostas ao tempo aonde o sol os ia ao longo do tempo queimando e deformando seus corpos. Outros enclausurados morriam de fome, pois a lenda da sede de sangue é verdadeira. Exagerada mais verdadeira. A exemplo de seus hemofílicos que devido uma disfunção renal precisam fazer hemodiálise para renovar e depurar o sangue de substâncias indesejáveis e que o órgão responsável por isso já não consegue fazer, nós os portadores do vampirismo também precisamos de uma cota de sangue novo a cada período que varia de 15 a 30 dias dependendo do grau em que a doença afeta cada um. Mais não saímos mais por aí como na antiguidade atacando as pessoas. Isso acontecia juntamente com o impulso sexual. A vitima nem sempre era tomada para saciar a sede e a necessidade de sangue, isso era uma conseqüência de estarem tão próximos e íntimos. Como o abraço e o beijo podem levar ao sexo entende? Mais tarde, já mais civilizados e conhecedores de nossas limitações e necessidades, fomos vencendo aos poucos e controlando cada vez mais a disseminação da doença, controlando e evitando sua transmissão. Por fim veio a extinção natural da espécie de morcegos por predadores que hoje também já não existem mais. _Então os vampiros bebem sangue? Sim bebemos tal qual um acidentado que perdeu muito sangue também bebe através da veia. Sua tecnologia nos ajudou e muito a controlar isso. Hoje temos o plasma, o sangue produzido em laboratórios e para os mais exigentes não é muito difícil conseguir uma bolsa de sangue nos bancos de sangues dos hospitais. É como um drogado que através de contatos certos e uma boa propina consegue sua droga de consumo. _Mas e o tipo sanguíneo? Isso tem a ver? Não, para nós, sangue é sangue e ele é assimilado pelo nosso, não importando se de humanos ou de animais, desde que estejam saudáveis, dai nossa preferência pelo sangue humano. Também isso tem uma implicação psicológica, o sangue humano nos torna mais humanos. _Quer dizer que a decapitação, o fogo e a estaca enfiada no coração não matam vampiros, quer dizer não é preciso disso para matá-los... Há sei lá mais o que estou perguntando. _Tudo isso mata não só nós os vampiros, mas qualquer um que seja submetido a essa prática de execução. Morremos de velhos por falência múltipla de nossos órgãos. Morremos assassinados e de acidentes como todos vocês. _E o sangue? Como bebem, quero dizer todos consomem da mesma maneira? _Não, da mesma maneira que entre os drogados há os que injetam os que ingerem e os que inalam, entre nós há os que diluem em vinho e outras bebidas para depois beberem, há os que injetam diretamente na veia e há os que, dependendo de com quem estejam ou com quem vivem, bebem diretamente na fonte. _Você quer dizer no pescoço da vítima? É como eu disse, dependendo da relação que tenham com o seu doador não se pode mais chamar de vítima, e na fonte não quer dizer necessariamente no pescoço. O prazer de receber o sangue novo é igual ao do viciado que toma a droga, no nosso caso é uma necessidade, mais é tão prazerosa que o corpo responde e a mente se rejuvenesce. Daí essa associação de um prazer semelhante ao sexual. _Então vocês estão transmitindo a doença e fazendo uma raça de vampiros. _Não, com raras exceções isso não acontece mais faz muitos séculos. Isso só acontece deliberadamente e intencionalmente. Uma pessoa não se torna vampiro por ser doador ou parceiro de um vampiro. Veja que é o vampiro que lhe toma o sangue e não o contrário. A doença só é transmitida se a pessoa tomar o nosso sangue infectado da doença entende? E pare de pensar que saímos por ai mordendo as pessoas, isso não tem a menor graça, alem de doer muito não nos dar prazer. _E como fazem então? Quero dizer fora os drinques misturados ao vinho, aos injetados diretamente na veia e aos tirados das bolsas e tomados em cálices, como fazem para beber na fonte, no corpo? _Já lhe disse, mais você quer detalhes, sinto sua curiosidade e até certo prazer no assunto. Disse rindo. Com exceção de uns poucos tarados que descontrolados pela doença atacam suas vítimas e bebem-lhe o sangue contra sua vontade, e estes são severamente punidos pelo nosso comitê de sobrevivência pacífica, na maioria fazemos isso de comum acordo com o doador e parceiro. Isso dá muito prazer a ambos. _Sim mais como é isso? Ora é como fazer sexo, ou melhor, é sempre no jogo sexual que a doação acontece. Nosso parceiro devidamente informado e consentindo na doação por amor, é levemente ferido na parte do corpo que desejar, isso depende muito dos parceiros. _Mais como assim ferido? Vladeska levantou-se e pegou seu vestido. Da parte interna próximo ao seio ela tirou um pequeno dedal com uma ponta metálica muito fina e deu-me para observar. Era tão preciso e afiado quanto um bisturi, e que na minha curiosidade terminei por encostá-lo no braço e me ferir acidentalmente. Vladeska preocupada gritou _Cuidado não brinque, isso apesar de pequeno dependendo de onde ferir pode matar. Deixe-me guardá-lo e ver isso. Apontando para o sangue no meu braço. Era só um ferimento leve superficial, mais que sangrou fácil. Percebi seus olhos brilharem ao segurar meu braço e ver o sangue. O medo, não sei, tomou conta de mim e tentei afastá-la. _Calma, nada farei que você não queira ou permita. Mais me deixe ajudá-lo. Nossa saliva é rica em propriedades analgésica e cicatrizante. Falou isso e levou o dedo à boca olhando pra mim. Fiquei ali paralisado, não sei se por medo ou por expectativa, mais sei que não tinha motivação para esboçar nenhuma reação contrária a sua determinação de me ajudar. Olhando para meus olhos me falou bem devagar como quem alicia ou seduz o outro. _Me diga, está doendo, no corte, ardendo? _Sim. Respondi. _Pois vou tocar sua ferida com meu dedo e minha saliva fará você se sentir melhor. Nem tinha acabado de falar e sua mão pousava no meu braço. Seu dedo fez uma leve pressão sobre o ferimento e foi o suficiente para que parasse realmente de arder, pois doer mesmo não doía nada, era um cortezinho à toa. Ela olhava fixamente nos meus olhos e seus lábios tocaram os meus. Eu a beijei apaixonadamente e com desejo, e devagar dirigi sua cabeça na direção de meu braço. Sua boca tocou o ferimento delicadamente e abraçado a ela pude sentir meu sangue sendo drenado. Uma corrente de prazer invadiu meu corpo e pude sentir uma leve aceleração no meu ritmo cardíaco. O Medo novamente me impediu de prosseguir, e interrompi a doação. Vladeska rio de maneira sensual e provocativa, e terminamos por fazer amor mais uma vez.
Vladesca e eu ainda sentíamos o coração bater forte, ela deitada entre minhas pernas, metade do corpo por sobre o meu. Senti sua boca úmida no meu peito como a morder-me de leve. Havia segurado o pequeno crucifixo que trago pendurado numa corrente ao pescoço. Sorria mostrando a delicada cruz entre os dentes. _Já sei, já sei, você não tem medo de cruzes, é isso? Ela soltou o crucifixo de ouro e arrematou entre sorrisos. _Medo? De cruz? Não meu anjo, isso é mais uma de suas lendas, mas de prata sim temos certo receio. Esse metal quando em contato com nosso corpo por um tempo prolongado pode nos causar sérias conseqüências, algo parecido com o que à ingestão ou o contato demasiado com o chumbo e o mercúrio pode causar a qualquer pessoa. E rindo debochadamente... _Uma bala de prata pode sim nos matar instantaneamente como uma outra bala comum, tanto quando pode matar qualquer ser vivo. _E a lenda de que água benta queima a pele de vampiros? Perguntei já imaginando a resposta. _É como você disse, uma lenda. Não passa disso. Evitamos a imersão por tempo prolongado em qualquer água, principalmente a salgada, mas não por causa disso. Ao contrair a doença do vampirismo naturalmente passamos por algumas transformações, da mesma forma que qualquer pessoa passa ao contrair outras doenças. A cor pálida independente da cota de sangue que tomarmos é uma evidência dessa transformação. A magreza, a perda de peso nos deixa com esse ar meio debilitado, mas isso é uma conseqüência da infecção, geralmente somos muito fortes fisicamente, até mesmo em relação a outras doenças. Estou com fome. Disse de repente. _Não vai beber mais nem uma gota de meu sangue, esqueça. Ela rio desembaraçando-se de minhas pernas e levantando e caminhando até o interfone. Pediu dois lanches que comemos entre brincadeiras e conversa séria. Quando de repente ela levantou-se e se vestiu. _Já vamos? Perguntei. _Sim, já. Preciso ir. _Quando nos veremos de novo? _Você sabe onde trabalho. _E onde você mora. Vladesca pensou um pouco e virou-se na minha direção ajeitando o vestido. Abriu um sorriso debochado e disse fazendo uma mesura. _Ora, você sabe, nós os seres demoníacos, mortos vivos como vocês falam moramos numa sombria tumba nos cemitérios... E completou rindo mais ainda. _Mas só os vampiros pobres, sem estirpe, os aristocratas tem seus castelos, geralmente cheios de fantasmas e almas penadas. Veio em minha direção e abraçou-me com certa ternura. _Vamos, realmente preciso ir.
Saímos do motel e caminhamos até meu carro. Percebi que seus passos demonstravam certa pressa. Quando chegamos ao carro ela me abraçou, demoradamente e disse me olhando nos olhos. Vá, eu tenho de seguir em outra direção e não quero que me acompanhe, nos veremos de novo um outro dia. _Mas pra onde você vai, e com quem? Você tem família? Eu queria saber mais sobre você, não tivemos muito tempo. Vai estar na boate à noite? Perguntei já com ela a certa distância, sem obter resposta. Entrei no carro e dirigi até meu apartamento na Zona Sul. Não preciso dizer que o resto do dia não foi normal, e que eu não parava de pensar em Vadeska. À noite voltei a boate, sem sucesso, Vladeska não havia retornado. Passei muitas noites por lá, e nunca mais a vi. O dono com quem conversei rapidamente me informou que não sabia de seu endereço e que ela não usava telefone. Não havia dado mais notícias. Os anos se passaram e Vladeska foi se tornando apenas uma lembrança misteriosa, uma saudade do desconhecido e uma falta do mistério.
Hoje mais de 20 anos se passaram, e ainda me pego pensando nela, na sua fantasia e de como estará sua aparência agora. Ainda tenho a marca do pequeno corte na parte interna do braço direito, bem na veia. E ainda sinto como num sonho seus lábios me sugando a veia e aquela sensação de prazer orgásmico. Vladeska pode ter sido meu mais fantasioso sonho, mas pode ter sido minha mais estranha realidade. Sinceramente eu não saberia definir entre o sonho e a realidade. Mais sei muito bem definir a lembrança e a saudade dos momentos que tivemos juntos. Uma coisa eu sei, ela era inteligente demais para a idade que aparentava ter. Era estranhamente fascinante e persuasiva, misteriosa e diferente de todas as mulheres com quem já estive. Embora tenha eu ficado por muito tempo me observando para identificar alguma mudança de hábito, de comportamento ou mesmo física, nunca notei ou senti nada de diferente alem da saudade e da lembrança de Vladeska. Hoje muito tempo depois, com mais conhecimentos adquiridos e gosto mais apurado, tenho uma estranha necessidade de associar certos costumes, comportamentos e gostos meus ao encontro que tive com Vladeska. O gosto pela cor púrpura, o brilho e o sabor do vinho. A música medieval e gótica, a roupa preta, à noite, o não gostar muito de água, principalmente de praia e da água salgada. Gostar mais da noite que do dia, apreciar estar na penumbra e evitar o sol e a claridade forte. Não ter medo de cemitérios, fantasmas e almas penadas, enfim, de não valorizar demasiadamente os acontecimentos contrários a minha vontade e de viver cada dia como se fosse o último, apreciando até mesmo meus momentos de solidão e tristeza, de saudades e recordações como a lembrança de minha doce e bela vampira, Vladeska. Meu sonho de terror mais doce e sensual.
Um desenho seu feito anos depois por um artista segundo minha descrição física de sua aparência é a única coisa palpável dessa aventura, alem da cicatriz no braço. Em que tumba sombria ou castelo antigo dormirá minha amada agora? Que veia seus lábios macios sugam nesse momento? Quando meu corpo e meu sangue, meu coração e mente ainda chamam por ela.