Dúvida cruel
Eu não acredito, mas eles insistem em dizer que, ontem, eu morri. Um absurdo, claro: não vejo como isso possa ter acontecido. Ontem foi um dia como outro qualquer. Acordei às sete horas, tomei banho, preparei o desjejum e fui para o escritório. Não vi Maria, minha esposa, porque ela vai cedinho à feira, todas as sextas. As crianças ainda estavam dormindo – estão de férias e, por isso, têm todo o direito de dormir até mais tarde. O porteiro do prédio não me cumprimentou quando eu saí, provavelmente estava de mau humor. O que me irritou, mesmo, foi que nenhum motorista de táxi parou ao meu aceno. Bando de mal-educados!
Acabei andando as nove quadras até a empresa, mas, mesmo assim, não me senti cansado. Por isso, subi as escadas em vez de pegar o elevador. Quando cheguei na porta do escritório, vi que a secretária, Tereza, chorava. Sou uma pessoa discreta, passei reto murmurando apenas um bom-dia, ao qual ela não respondeu. Passei a manhã toda lendo relatórios atrasados, e, milagre dos milagres, o telefone não tocou nenhuma vez e ninguém bateu à porta para me interromper.
Quando dei por mim e olhei no relógio, já eram quase duas da tarde. Como não estava com fome e sentia uma grande energia, resolvi não interromper o trabalho. Segui até o final da tarde, sem parar. Foi só às cinco horas, quando finalmente achei que já tinha feito muito por um dia só e ia deixando o escritório, que pela primeira vez ouvi falar da minha morte.
A notícia veio pelos lábios de Tereza, que agora parecia um pouco mais calma do que pela manhã:
– Doutor Marcos, estou saindo para ir ao velório do doutor Fernando – disse ela ao meu sócio, que também passava por sua mesa no momento.
Estaquei. Que brincadeira era aquela? Ao meu velório? Ela estava louca, ou se referia a algum outro Fernando? Parei bem na sua frente e fiquei encarando-a, para ver se ela se explicava. Sua única reação, no entanto, foi encolher-se e esfregar os braços, como se sentisse um frio súbito.
– E as coroas, em nome de todos nós, você já enviou? – quis saber Marcos, acrescentando antes que a secretária respondesse: – Envie meu pêsames à Maria, e diga que eu passo lá mais tarde. Ainda não estou acreditando! Meu Deus, eu e o Fernando trabalhamos juntos desde que saímos da faculdade!
Esperei um minuto, com certeza de que logo os dois iriam cair na gargalhada – embora eu, particularmente, considerasse a piada de péssimo gosto. Já ia abrir a boca para perguntar se estavam me gozando porque eu passara o dia enfurnado na minha sala quando Tereza voltou a chorar. Atônito, estendi o braço para consolá-la, mas meu colega foi mais rápido e enlaçou-a num abraço desajeitado. Olhando para ele, percebi que, por baixo dos seus óculos, também corriam duas grossas lágrimas.
– Ei, vocês dois querem me explicar o que está acontecendo? – disse eu, por fim, uma pontinha de medo começando a se insinuar no meu peito.
Foi como se eu nada tivesse dito. A secretária chorou silenciosamente por mais alguns minutos e, depois, desvencilhou-se dos braços de Marcos.
– O senhor sabe – disse ela, olhando pare ele e continuando a me ignorar – que eu sempre tive uma queda pelo doutor Fernando? Tão distinto, tão elegante... Claro, nunca disse nada, ele era casado e eu sou uma mulher direita, mas, agora, fico pensando se não devia ter aproveitado...
Chocado com a revelação, eu não sabia se começava a rir ou se perguntava se ela estava brincando. Enxugando os olhos, ela se recompôs e disse, num sorriso triste:
– Mas, por favor, doutor Marcos, não conte isso para ninguém. Deus me livre, ele lá, morto, e eu aqui falando essas coisas...
Saí batendo a porta. Os dois deixaram escapar um grito de espanto, mas azar: se queriam ficar naquela brincadeira idiota, como se eu não estivesse ali, eu é que não iria ficar escutando baboseiras, muito menos voltar atrás para pedir desculpas por tê-los assustado. Ignorei o elevador e mais uma vez preferi as escadas – um pouco de exercício ajudaria a me acalmar e a pensar melhor sobre o assunto. Que, pensar sobre o assunto, que nada!, xinguei a mim mesmo. Onde já se viu ficar dando bola para quem fingia que eu tinha morrido?
Cheguei em casa quando já escurecia (mais uma vez, nenhum táxi tinha parado para mim). Ao dobrar a última esquina, estranhei a movimentação: dezenas de carros estavam estacionados próximo ao meu prédio, outros paravam na frente dele e deixavam passageiros. Será que algum dos vizinhos estava dando uma festa e sequer me convidara?, pensei, um pouco enciumado.
O porteiro da noite estava ocupado e não me viu passar. Subi até meu apartamento lembrando que não comera nada desde a manhã, e pensando que uma janta gostosa me faria bem. Aquela cena estranha no escritório me deixara sentindo esquisito, só podia ser fome. Será que Maria já estava com a comida pronta?, questionei-me, e lancei um olhar para a porta do 202. Não precisei pegar a chave para abri-la: chorosa, Maria encostava-se ao batente, recebendo abraços e consolos de mais um casal de amigos que chegava.
– O que é isso? O que está acontecendo aqui? – perguntei à minha mulher.
Mais uma vez, fui solenemente ignorado. Deixando a porta escancarada, Maria e os outros dois apartamento adentro, até a sala. Segui-os, e quase desmaiei ao constatar que o aposento estava cheio – de pessoas e de coroas de flores. No centro, um esquife, iluminado por duas velas. Meus filhos, que também choravam, correram agarrar-se às saias da mãe.
Caminhei até o meio de toda aquela gente, certo de que todos os olhares se voltariam para mim, percebendo o engano da situação. Ninguém me deu bola. Tentei puxar conversa com um ou dois velhos conhecidos, que há anos eu não via e que agora ali estavam, mas eles também não prestaram atenção em mim. Por fim, aproximei-me do caixão. No entanto, não tive coragem de olhar para dentro.
Depois disso, corri trancar-me no meu quarto, com medo de estar enlouquecendo. Ou eles todos estão loucos, ou sou eu que devo ser internado. Morto, pelo menos, sei que não estou. Não consegui sequer pregar o olho a noite inteira desde que tudo isso aconteceu, como posso estar dormindo o sono eterno? Fiquei esperando Maria vir se deitar, mas ela não veio. Passou a noite toda ao lado do caixão, soluçando. Apesar do absurdo da situação, senti-me comovido pela sua dedicação. Sinal que me ama. Mas como pode pensar que estou morto? Como pode aceitar tranqüilamente todos os pêsames?
Já são novamente sete horas da manhã, falta apenas uma hora para o enterro. Para o meu enterro, como eles insistem em dizer. E, mesmo depois de uma noite inteira pensando, ainda não sei o que devo fazer. Ficar aqui, quieto, no meu canto? Voltar lá na sala e tentar novamente explicar que estou vivo, olhem, eu estou aqui? Ou dar-me por vencido, já que eles são maioria, e acreditar eu também que eu morri? Oh, Senhor, que dúvida cruel!