NÓS ESTAMOS VIVOS

Quando Helena abriu os olhos naquele dia, não quis se levantar, ela virou na cama um pouco e sentia as cobertas esfriarem, estava sozinha naquele quarto e não podia acreditar.

Fazia apenas uma semana desde a perda de seu marido, única pessoa que sempre esteve ao seu lado.

Perda prematura e súbita.

Rasgo no tempo que eles passariam juntos, dez, vinte, cinquenta anos.

A vida toda.

Ela não tinha mais nada, eles não tiveram filhos, sua família já havia desertado dela.

Talvez tenha sido apenas vítima de suas escolhas.

Enquanto teve a oportunidade, não conservou nenhum amigo, não se esforçou para se manter próxima daquele primo mais distante.

Agora colhe os frutos da vida dedicada apenas aquela única pessoa.

Aquela pessoa que já não está mais ali.

É tempo de voltar ao trabalho, se ela não quiser ser demitida, mas Helena não tem forças para se levantar.

É tempo de comer, mas ela não tem forças para cozinhar.

Se ao menos fosse ela naquela noite, por qual razão precisava se justamente ele?

Dos dois, ele era quem teria mais chances de reconstruir a vida e seguir em frente.

Qual a razão de existir sem propósito?

Helena pensara em se matar, mas ela não conseguiu levar a cabo, não depois do que aconteceu.

Na noite em que subiu no banco e amarrou a corda no cano do teto da cozinha, ela ouviu um som.

Um som que ela conhecia bem.

O som de seu marido cantando no chuveiro.

Mas não tinha como.

Ainda assim ela foi até lá para ver.

Quando chegou, ele não estava, ele não tinha como estar. Ela se sentiu boba por pensar que de alguma forma mágica uma pessoa que foi enterrada pela manhã daquele dia teria levantado da cova e ido tomar um banho.

Helena se jogou no chão e deixou as lágrimas escorrem quentes por seu rosto frio.

Depois desse episódio houveram mais algumas coisas.

A luz do escritório se acendia no mesmo horário em que seu marido ia trabalhar. Ela escutava passos na cozinha pela manhã como quando ele fazia o café. Ela jurava que ouviu ele chamando seu nome uma noite.

Todas as noites desde o enterro.

Era difícil para Helena superar aquilo que ela não queria acreditar, era muito difícil.

É difícil ver uma coisa que não é real e torcer para que ela se transforme na realidade.

Ela queria se unir ao marido, mas ele parecia estar de guarda para garantir que ela não faria isso antes da hora.

Helena não queria se levantar da cama e fechou os olhos novamente.

Sonhou que estava no parque da cidade, sentada no banco de pedra debaixo do velho ipê cor de rosa, seu marido vinha andando logo depois, se apressando para encontrá-la. Ele abria um sorriso largo e acenava, ela acenava de volta.

Helena abriu os olhos.

Já era noite.

Ela não conseguia se mover, estava tendo uma paralisia do sono. Os episódios voltaram mais fortes após o falecimento do esposo.

Teve a impressão de ver um vulto todo branco sentado em sua cama.

Sentiu em seu coração que era seu marido.

Conseguiu sentir também que ele estava sofrendo.

Como se estivessem em dois planos diferentes, incapazes de estar juntos, ainda que no mesmo lugar.

Helena entendeu então que sua dor estava machucando seu marido.

Que mesmo após a dura separação ele ainda estava ali, e que a sua ação feria através do pano da existência nos dois mundos.

Helena conseguiu passar por sua paralisia e não mais via o vulto.

Ela não sabia se era real ou parte do processo, mas resolveu acreditar no que sentiu.

Helena se levantou da cama e fez um jantar, ela comeu pela primeira vez em três dias e chorou quando terminou a última garfada.

Ela sabia que apesar da dor e da distância eles estavam juntos.

Rosa de Almeida
Enviado por Rosa de Almeida em 05/08/2024
Código do texto: T8122159
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