Sobre formigas
Edwards não afrouxou a pressão da espada. Habilmente, Alexandre fez um voleio de corpo e seu preceptor perdeu o equilíbrio. Decidido, o menino usou sua espada para manter a do oponente com a ponta para o chão. Furioso, Edwards libertou-se e se pôs novamente em posição de combate.
_Maldição, Alexander! _bradou. _Você esteve com a luta ganha! Poderia ter cortado minha cabeça quando perdi o equilíbrio. Que idéia foi aquela de segurar minha espada?!! Se isso fosse uma luta de verdade, você poderia ser morto por isso!
_Se eu cortasse sua cabeça, iria te matar, Mr. Edwards.
_Estou falando de fingir que ia cortar a minha cabeça.
_Então, eu estaria fingindo que iria te matar.
_Exatamente!
_E por que eu deveria matar alguém? Gosto de viver. Não quero impedir que outros vivam!
Richard Edwards precisou de todo o seu autocontrole. Alexander Van Allen, autodenominado Alexandre, era uma criança singularmente problemática. Não tinha nada que lembrasse o homônimo da Antigüidade ou a imponente silhueta do General Marius Van Allen, seu finado pai. Reprimindo as palavras duras que lhe acorreram, pegou o garoto pelo braço e procurou algo pelo chão do jardim.
_Veja isto! Veja! _ele disse, apontando para uma densa fila de formigas que atacava a roseira negra, carregando os pedaços das folhas para a floresta ao redor. _Essas criaturas desprezíveis são como seus inimigos. Olhe como destroem a roseira que seu pai plantou e regou com o próprio sangue! Se não mata seus inimigos, é isso o que acontece: eles se multiplicam e acabam com tudo o que lhe é mais caro. Você não pode ter pena!
Para ilustrar a fala, deu um vigoroso pisão, matando dezenas de formigas e desorientando as demais.
_Viu? Inimigos são como formigas! Esmague um bom tanto deles e os outros vão fugir de você. Venha até aqui e faça como eu _pisou em mais um bocado de animaizinhos.
Mas Alexandre balançou a cabeça, sério.
_Acho melhor não, Mr. Edwards. Não é culpa das formigas que elas cortem as folhas da roseira, formigas existem para cortar e carregar folhas. Elas não têm como saber que nós gostamos tanto dessa roseira.
_ALEXANDER VAN ALLEN! _bradou Richard, balançando-o pelos ombros. _São apenas formigas! Formigas! Não me diga que não é capaz de matar uma única formiga!
_Elas não fizeram nada tão grave que merecesse isso... _balbuciou o menino.
Edwards soltou-o e aplicou-lhe uma bofetada sonora no rosto, algo que andava fazendo com bastante freqüência. Deixou o pupilo sentado, de cabeça baixa, e entrou novamente na casa com as veias da testa latejando.
_Gottfried! Gottfried! Escute bem: quero que acabe com aquelas malditas formigas que estão cortando a roseira. Não interessa como irá fazer isso, desde que não sobre uma única para remédio. Não suporto vê-las mais!
Alexandre ficou muito tempo parado, olhando para as formigas. Seus grandes olhos vermelhos-crepúsculo estavam tristes com aquela matança. As formigas, antes tão ativas, tão belas e perfeitas, jaziam retorcidas e esfaceladas. Ajoelhou-se, com o vento bagunçando o cabelo loiro e fino. Ele era uma criatura desprovida de todo e qualquer instinto belicoso. Um amante da natureza, gentil e prestativo, que tinha ânsias de vômito sempre que confrontado com sangue.
Se Alexandre fosse qualquer outra criança, aquelas até poderiam ser virtudes que fariam os pais se orgulharem. Mas, convenhamos, aquelas definitivamente não eram características bem-vindas em um vampiro, muito menos em um que tinha sido anunciado, antes do nascimento, como “alguém que teria um império que se estenderia por todos os recantos do mundo”.
O pequeno gemeu. Sabia que Richard era bem-intencionado, só queria cumprir a promessa de fazer do menino um grande general. Mas a imobilidade da morte causava nele um vazio tão grande, que ele não sabia se seria capaz de suportar. “Eu devia ter nascido humano.”
Richard acordou muito mais bem disposto aquela noite. As tais formigas tinham sido exterminadas há doze horas e ele não teria mais que ver aquela prova do caráter fraco de Alexandre. Foi ao jardim confirmar se nenhuma meliante havia escapado do veneno. Ficou feliz ao ver que não, e que a roseira se havia regenerado totalmente e até crescido um pouco.
_Viu que paz, Alexander? É assim que a gente lida com um inimigo.
Mas o garoto apenas lançou-lhe um olhar duvidoso e agourento.
_Impressão minha ou essa roseira está invadindo o espaço das outras flores? _Edwards perguntou, intrigado, antes de ir dormir.
_Deve ser só impressão, senhor _respondeu Gottfried. _Não faz muito que eu dei uma boa poda nela. Nenhuma roseira cresce tão rápido.
_Essa roseira está passando do limite! _Edwards bradou, irritado, enquanto um filete negro de sua mão era estancado. _Está cobrindo os caminhos do jardim, daqui a pouco será impossível entrar e sair da casa!
_Estou fazendo o que posso, senhor _Gottfried se encolheu, aflito. _Mas não posso ficar podando essa roseira dia e noite!
_Não me interessa como vai fazer! Se quer sua cabeça no lugar amanhã, arranje um jeito!
Mesmo levantando-se o mais cedo que pôde, Gottfried não teve sucesso. Sua velocidade sobrenatural não era páreo para a velocidade de regeneração e crescimento daquela planta.
_Uau! Como ela está grande! _Alexandre se aproximou.
_Meu príncipe _disse Gottfried, respeitoso _estou fazendo o que posso.
_Não sou príncipe _ele respondeu, sério. _Meu pai era um barão e nada mais. E não se preocupe. Consegui algo que vai nos ajudar.
Apresentou o punho fechado com um sorrisinho. O jardineiro reparou que ele estava todo sujo de terra. Antes que pudesse perguntar o óbvio, Edwards apareceu, zangado.
_Seu tempo acabou, Gottfried _disse, já sacando a espada.
_Não, Mr. Edwards.
Alexandre falou com tanta autoridade que o homem parou o gesto no meio. Era raro ver o menino se dirigir a alguém sem parecer que estava pedindo desculpas por incomodar. Contrafeito, Richard embainhou a espada.
_Respeito sua vontade, alteza _fingiu não ver a careta de Alexandre. _Mas eu já havia avisado que, se ele não desse um jeito nessa planta...
_Mas a culpa não foi dele, Mr. Edwards. Não é justo.
_E como essa maldita roseira nunca deu trabalho antes? Tem alguém fazendo um serviço malfeito aqui e isso é algo que deve ser punido.
Alexandre deu um muxoxo. Acariciou a planta.
_O que acontece, Mr. Edwards, é que está faltando alguém que fique dia e noite cuidando dela.
_Nunca precisamos disso antes!
_Claro que precisávamos! Já tenho o candidato perfeito.
Apresentando a mão que ainda mantinha fechada, Alexandre fez um momento de suspense e abriu os dedos. Uma grande formiga alada estava tranqüilamente pousada na palma.
_Está cheia de ovinhos! _ele disse, sorrindo. _Em pouco tempo, poderá formar um novo formigueiro. Formigas não vivem muito, mas trabalham dia e noite, só cortando folhas. É para isso que elas existem. Cortar e carregar.
Um forte tom arroxeado surgiu nas bochechas de Richard, que sentiu vontade de matar alguém. Formigas! Malditas formigas!