O que Concesso não contou

Na história de tia Rita e sua pia, que inseri neste Recanto há alguns anos, e que abaixo transcrevo, para o melhor entendimento do eventual leitor, todo o relato se resume à troca da pia que tia Rita havia recém-instalado, em razão de haver flagrado numa manhanzinha, o primo visitante Concesso, de Santana da Prata, a escovar beatificamente os dentes - ou melhor, suas próteses dentárias - na referida pia...

Tia Rita, que se aprontava para preparar o desjejum, ao se deparar com a cena inusitada, passou do pálido que era à translucência, apenas saudou o primo com um engasgo e lhe faltou muito pouco para, já havendo engolido seco, ver as próprias dentaduras irem goela abaixo...

O impávido Concesso, contudo, não se deu por achado e tampouco desconfiou da delicadeza da situação que havia criado. Uma pia, lisinha como aquela, com água corrente, era o supra-sumo do conforto e da realização do homem na terra. Homem bom, trabalhador e honesto, só o pudor foi que o conteve de revelar à atenciosa prima Rita que antes de sua chegada à cozinha, havia usado o tamborete para ganhar altura suficiente e poder desafogar a bexiga... Temeu que ela o reprovasse pela arte que para um sexagenário implicava em risco de queda...

A tia e a pia

Tia Rita estava toda contente com as reformas da casa, que ia fazendo paulatinamente, com a ajuda das irmãs solteironas. A mais recente aquisição era a pia da cozinha, lisinha, de cimento, um portento.

O asseio, que era a regra na casa, angular esteio, ganhou realce com aquele brilho, que a todos os parentes e visitantes Tia Rita fazia questão de apresentar e de ver aprovar.

Quando chegou de visita, bem rara que fazia, o primo Concesso, confesso, não foi poupado daquela primazia. Concesso, que vinha da Pedra do Indiá, trazia consigo a irmã Dica, viera à Velha Serrana para uma breve estada, e rever toda a parentada.

Tudo bem transcorria, em meio a tanta mútua cortesia, até que um dia, quando bem cedo se levantara Rita para passar o café e, na cozinha, foi topar com o primo, em pleno uso daquele mimo: escovava a dentadura, com toda a candura, sobre a pia da Tia, aquela belezura...

Tia Rita, com tanto nojo no bojo, por polidez, lívida tez, nada fez. Mas foi como uma súbita viuvez. Esperou o primo embarcar no trem, e mais que urgente, fremente, em nenhum momento hesitou: a pia por outra nova trocou. E estou que rezou, para que o primo não mais voltasse. Graça que alcançou.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 07/08/2020
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