Insetos

Aquele era, realmente , um péssimo apartamento. Aliás, todos ali, naquele pequeno prédio, o eram. Por dentro e por fora, caindo aos pedaços. O proprietário, que só aparecia recolher os alugueis, nem cogitava reformá-los. O elevador, sempre quebrado. Da maior parte das escadarias, já haviam roubado a madeira do corrimão. Nas paredes, pastilhas faltando e pichações. Infiltrações que causavam manchas, manchas que muitas vezes tinham forma de fantasmas, e cheiro de mofo. Muitas das lâmpadas nos corredores só acendiam ao famoso toque do cabo de vassoura. Outras tantas, permaneciam já havia tempo queimadas. Era um milagre ainda não ter ocorrido um incêndio. Eu mesmo tive que improvisar, em meu apartamento, por dentro, uma tranca, pois a fechadura não garantia nenhuma segurança. Eu sabia que, se trancada somente com a chave, um leve tranco a faria abrir, e torcia para que ninguém o tentasse. Não podia instalar um chuveiro muito potente, pois a fiação elétrica não era adequada para tal. O pouco papel de parede que ainda insistia em permanecer tornava macabro o ambiente. Manchas no teto, sugerindo infiltrações e problemas sem solução. O chão, ainda de antiga madeira, tomado por cupins, rangia sob meus pés. O banheiro me lembrava Psicose, o clássico de Hitchcock. A cortina de plástico, que isolava a banheira, era sinistra... Mas era o que eu ainda podia pagar com o que conseguia ganhar vendendo, ilegalmente, quinquilharias falsificadas pelas ruas do centro.

Não só os apartamentos, mas também os inquilinos, eram de baixíssima qualidade. E nisso me incluo. Eu sempre ria dizendo que, se um buraco no chão se abrisse, e tragasse a todo o prédio, e aos seus moradores, talvez ninguém sequer tivesse muito o que lamentar. Eu não conhecia ninguém pelos nomes, somente pelos números dos apartamentos. A vizinha do 09 vivia sozinha, mas sempre levava para lá seus clientes. Cobrava pouco e, além dos programas, sei que vendia drogas. Muitas vezes me senti mal com o odor fétido que de lá vinha. Ainda no meu corredor, no apartamento 07, havia um alcoólatra que na esposa batia, religiosamente, todo santo dia, como que a cumprir um ritual. Às vezes, eu me sentia pior que ele próprio, por tudo ouvir, e nada fazer. Nas madrugadas, conseguia ouvir o som dos tapas, assim como o choro descontrolado, e coisas quebrando. Eu vivia no 08. Eram os três únicos apartamentos ocupados naquele segundo andar. No primeiro, apenas um jovem casal que costumava brigar na rua em frente ao prédio. Até onde eu sabia, eles sobreviviam de pequenos furtos pelo centro da cidade. O andar de cima havia sido interditado para reformas que jamais aconteceriam. Na verdade, o prédio todo teria que ser demolido, e com seus moradores dentro. Seria o certo a se fazer.

E havia insetos, muitos deles. Baratas, formigas, cupins. Havia aranhas também. E, por vezes, vi lacraias. Brotavam dentre frestas na madeira apodrecida, ou sob as lajotas trincadas. Havia ratos, aos montes, camundongos na verdade. Eu conseguia imaginar minha vizinha do 09 tendo seus encontros enquanto eles lambiam restos de catchup do prato da mesa de centro. No canto da imunda sala, talvez, uma caixa de pizza, com alguns restos já tomados por pequenas larvas.

Estava decidido: Faria uma dedetização. Alguém teria me indicado um produto para tal. Garantiu-me que somente agia em animais de sangue frio. Mesmo sem experiência e adequados equipamentos de proteção, não deveria me fazer mal, e eu não tinha dinheiro suficiente para contratar uma empresa dedetizadora. Seria até irônico uma empresa especializada dedetizando um quarto naquele prédio que se desmanchava em podridão. O produto era barato, e de uso bastante simples: Bastaria introduzir um palito de fósforos aceso dentro da latinha. Em contato com o fogo, o pó nela contido viraria uma densa fumaça. Nas instruções era dito para que moradores do local ficassem fora por oito horas. Eu iniciei o procedimento e fechei as janelas. O gás já tomava conta do apartamento. Com uma banqueta e uma revista qualquer embaixo do braço, fechei a porta e desci até a calçada, em frente ao prédio.

Acredito que tinham se passado, se muito, duas horas. Era domingo. Não havia como esperar todo o tempo sugerido no rótulo do produto. A revista era de péssima qualidade, e só trazia fofocas de celebridades... Danem-se vocês e suas futilidades... Voltei ao apartamento e, já do corredor, podia-se sentir o característico cheiro do gás venenoso. Logo alguém reclamaria... Besteira, com todo o mau cheiro que vinha do apartamento 09, alguém se importaria com o cheiro de gás de dedetização? Adentrei o apartamento e a densa fumaça pouco me permitia ver. Imaginei que deixei de ler, no rótulo, se a quantidade usada seria adequada ao minúsculo espaço . Tirei a camisa e coloquei-a como um lenço de caubói, tentando proteger as vias respiratórias. Fechei a porta e pensei que, se abrisse as janelas, o gás não surtiria efeito. Fazia muito calor. Pela manhã, o ar ainda tinha se mantido fresco mas, com o sol aparecendo, e nenhum vento, logo a temperatura subiu, e muito. Eu já suava copiosamente. Digamos que tinha facilidade para isso, em virtude do meu excesso de peso.

Senti algum vertigem, e comecei a tossir. Pensei ter sido ruim a ideia de voltar ao apartamento muito antes do recomendado. O cheiro era realmente muito forte, e nauseante, causando-me engulhos. Já me dirigia para a porta, em meio à tosse que parecia incontrolável. Não lembrava onde largara a revista. Quando a vi, finalmente, no chão, tive a intenção de pegá-la, mas desisti quando uma barata fez-se surgir dentre suas páginas. Ela caminhava com bastante dificuldade, eu poderia até dizer que estaria tropeçando. Baratas tropeçam? Achei isso engraçado, e até esbocei algum riso. Ela parecia bêbada, como o vizinho do 07. Fiquei de joelhos no chão, para observar mais de perto. Sempre ouvira que baratas eram duras na queda, que sobreviveriam a uma hecatombe nuclear. Essa não parecia tão durona assim. Minhas gargalhadas preencheram o recinto enfumaçado. Às vezes, parecia abrir, parcialmente, as asas, esfregando-as umas nas outras. Eu sequer percebera, distraído observando o agonizante inseto, que a camiseta que protegia meu rosto caíra ao chão.

Subitamente, em meio a movimentos desesperados, a barata vira, ficando com as patas para cima. Permanece imóvel por infindáveis segundos para, na sequência, debater-se novamente, e se contorce, para então, por fim, paralisar. Consigo perceber que suas antenas ainda se movem, sutilmente. Sou tomado, estranhamente, de um sentimento de piedade, e também culpa... E repulsa. Talvez repulsa por mim mesmo. O que teria me causado aquele pobre inseto para acabar daquela forma? Se ali se proliferaram fora porque, tanto eu quanto os vizinhos, todos nós, demos condições para isso. Nós éramos os responsáveis pela sua asquerosa presença. Nossos hábitos e vícios. Nossos estilos de vida. A pizza que restava na caixa lambuzada de catchup. E eliminá-los não acabaria com aquilo que os tinha atraído até nós. Continuaríamos tão repulsivos, ou até mais, que todas aquelas criaturas.

- Triste, hein?

Ainda de joelhos, e com a cabeça quase tocando o vômito que se espalhava pelo chão, viro o rosto em direção ao sofá, de onde viera a voz. Tranquila e confortavelmente sentada sobre o mesmo eu via, em meio à enebriante névoa, o inseto que agonizava no chão a minha frente. Não sabia como seria possível reconhecê-la, afinal baratas deveriam ser todas iguais mas, de alguma forma, eu sabia que era a própria... Porém, ela tinha quase o tamanho de um ser humano... E sentava-se, elegantemente, com umas das muitas patas cruzadas.

Sem tirar os olhos da aberração que ocupava o sofá, toquei com o dedo indicador o pobre inseto que se encontrava a minha frente, já nos estertores da morte. Talvez ainda tivesse a esperança de, tocando o pobre animal, ressuscitá-lo. Comecei a chorar copiosamente, enquanto a criatura me fitava nos olhos.

- Por quê?

Dizem que fui encontrado caído no meio da sala, em meio a insetos dos mais variados tipos, que jaziam mortos , às centenas. Dos mais abundantes que ali havia, as baratas. Muitas delas, porém todas com tamanho normal. Nenhuma falante e com a estatura de um ser humano fora encontrada. O gás já havia se dissipado, pois dias já haviam se passado, e a equipe de resgate não teve dificuldades para entrar, visto que um leve empurrão fora suficiente para destrancar a porta. Precisaram de máscaras porque meu cheiro já era pior que os resquícios do gás venenoso que insistia em lá permanecer. Foi difícil remover meu pesado corpo do local, pisando em madeira corroída por cupins, e descendo escadas com lajotas e corrimãos soltos. Dizem que foi a vizinha do 07 a perceber algo de anormal no meu apartamento, incluindo o cheiro do gás venenoso. Dizem que ela esperou tempo suficiente para eu não mais vivo estar, e só então teria avisado alguém... Somente quando já não se havia mais nada a fazer.