Quimera

As ruas do centro, principalmente aquela avenida, encontravam-se apinhadas de gente naquela manhã de sexta-feira. Dentro de poucos dias, um daqueles tantos feriados cultuados pelos cristãos, nos quais se é tradição a troca de presentes. Por conta de tal celebração, o espaço nas calçadas se tornara um tanto reduzido, com comerciantes disputando, a grito, a generosa clientela.

Ela subia a avenida de maneira elegante, altiva, imponente. Seu porte era vantajoso, tanto quanto majestoso. O caminhar seguro, com passos largos, porém suaves. O olhar vítreo, profundo e hipnotizante, observava a tudo enquanto desfilava tomando uma parte considerável da calçada. A pelagem possuia um tom extremamente agradável, podia-se dizer, sedoso e dourado. Serpenteando por entre os transeuntes, a cauda esbarra graciosamente na perna de uma pequena menina que, no entanto, preocupa-se mais, naquele momento, em defender o sorvete recém comprado do ousado pouso de uma atrevida abelha. Também o homem de olhar frio, parado no sinal vermelho, não se dá conta do belo efeito furta-cor das escamas que cobriam a parte posterior do grande corpo, incluindo a já citada cauda. Parecia mesmo mais interessado no malabarista do sinal que, naquele momento, derrubava uma das garrafas que tentava equilibrar sobre a cabeça. Alguns metros adiante, gritaria em frente à loja de produtos populares. Empunhando um microfone, o homem de baixa estatura porém potente voz lança ao ar, junto aos preços incrivelmente baixos, gotículas de saliva e hálito de café. Apresentando plumas alvas e caprichosamente sobrepostas umas sobre as outras, as grandiosas asas roçam o rosto do locutor no momento em que ele anuncia aceitarem todos os tipos de cartões de crédito.

Porte majestoso... perfeição... perfeição afrontada pelo carro que, por conta da velocidade maior que a permitida naquele ponto da rua, não tem tempo nem espaço para frear. O grande corpo, agora estendido no meio da via, agora tão frágil e mortalmente ferido.

- Tava atravessando fora da faixa... puta merda... não deu tempo de segurar!

Curiosos se aglomeram em torno do carro verificando que, com o impacto, os estragos são realmente bastante grandes. visivelmente transtornado, o condutor insiste em repetir não possuir seguro para livrá-lo dos danos materiais.

Um fino fio de sangue escorre em direção à grade de um bueiro.

O pequeno homem de voz potente sequer percebe o incidente e entra na loja. Já era hora de buscar mais uma xícara de café.