Estátuas gregas

Geraldinho Estopa: o doidinho mais conhecido da Cinelândia. Os olhos pequenos, remelentos e vivos, sob uma testa frisada em rugas profundas, imemoriais, que afugentavam os transeuntes. As pessoas tinham pânico, receio instintivo das atitudes, gestuais abruptos e inesperados de Geraldinho Estopa. Davam-lhes esmolas automáticas e rápidas para se livrarem de sua demência agressiva:

- Deus não lhes pague neste mundo de dor!

Uma mulher, certa vez, parou de longe e reconhecendo um dos seus disse a si mesma: aquele infeliz ali é um médium... Nunca se soube com certeza. Mas, que Geraldinho Estopa via coisas... ah! Isso via.

Muitas vezes foi visto conversando com as pombas; abundantes senhoras da grande praça do centro velho do Rio de Janeiro. Ele era um rei e as pombas, sujas e sem penas, seus súditos atônitos. Seus discursos inflamados de monarca autoimposto espantavam todas as assustadiças aves para o outro lado da baía, para outros reinos de lá da enseada de Botafogo. Não voltavam nunca mais. Infiéis!

Geraldinho Estopa era doidinho, era o soberano das pombas traidoras, mas não era ateu, não conhecia as teorias existencialistas, absurdistas, tão em voga nas mesas do Amarelinho, do café Lamas e do Quartier Latin de Paris destes anos cinquenta. Acreditava na existência de uma força superior que movimentava os homens aqui na Terra, que acalmava seus ânimos, proporcionava-lhes mitigação para os seus sofrimentos e que era a senhora de seus destinos. Era a partir dessas conclusões confusas, fragmentárias, que Geraldinho Estopa passava horas discutindo, aos berros, com o monumento em honra de Carlos Gomes, em frente ao belo edifício do Teatro Municipal. A figura de bronze, altiva e cheia de fuligem sobre o pedestal, era um intermediário imponente das resoluções divinas para com os incautos do globo:

-Deus existe sim! Concluía satisfeito. Os moleques de rua riam à vera lá na frente do Amarelinho.

Um dia, sem mais nem menos, cismou em invadir o Museu Nacional de Belas no outro lado da Avenida Rio Branco. Era hora de tomar posse em algum trono palpável de um reino imaginário de Portugal, Brasil e Algarves ou algo parecido. Pressentiu que aquela construção antiga seria seu palácio de direito e justiça. Enfim seria um rei de verdade. Pompa, circunstância. Subiu, lépido, as escadarias forradas com tapete carmesim, apoiando-se, extasiado, na balaustrada de mármore. Ninguém se incomodou com sua presença furtiva. Ninguém prestou atenção naquela figura atarantada de cabelos crescidos para o alto, desprendendo poeira e moscas famélicas, amarfanhado pedaço de pano de mecânico. Um quadro gigantesco e escuro, com camadas espessas e sucessivas de verniz, dependurado não se sabe por qual força sobrenatural em uma parede lateral, estancou os passos do doidinho. Era uma cena bíblica de Abraão. Geraldinho sorriu:

-Deus está comigo!

Percorreu alguns corredores anexos, abriu portas de vidro grosso, arfou encostado a uma pilastra lavrada. Ninguém o viu. O palácio parecia deserto para ele. Um reino desleixado carecendo de mão de ferro e dogmas duros, necessários. Mistérios para novos tempos, justiças colocadas em prática, súditos felizes para uma nova era de paz. Ninguém o viu! Obteve a exata sensação de certeza em sua missão impetuosa quando, depois de perscrutar mais alguns corredores, deu de frente com um saguão de paredes altíssimas. Havia nichos pontuando essas paredes colossais. Nichos pintados de vermelho fosco. Sangue de guerras clássicas. Uma emoção sem proporções tomou o peito roto do novíssimo rei. Pelos dois lados do amplo ambiente formavam-se fileiras de formidáveis figuras de gesso. Cópias magníficas de estátuas de mármore helênico. Geraldinho Estopa viu ali sua comissão de recepção, seus criados prestativos, seus vassalos abjetos, suas concubinas para as horas de desejo, seus eclesiásticos conspiradores, conselheiros marciais, todos se colocando às suas ordens. Espetáculo belíssimo!

Avançou contrito por entre a silenciosa corte. Emocionadíssimo. Sentiu falta (interrogação súbita) de uma rainha. Onde estava sua senhora, esposa e cúmplice em seu momento de glória? Não seria completa sua conquista tão esperada sem estar de mãos dadas a uma delicada e fiel consorte. Sua aflição extinguiu-se quando olhou na direção oposta do salão e a gigantesca Vitória de Samotrácia pairou pelos ares. A rainha sem cabeça, trajes leves e imponentes ao vento. Rebentou uma alegria tão incontida em seu coração demente, que se precipitou em um longo e apaixonado discurso de agradecimentos e aptidões para o futuro de seu reino conquistado. Estava tão entusiasmado que não percebeu duas colossais cópias de Mirón e Praxíteles descerem dos pedestais e agarrarem, com uma brutalidade tão magnânima, os braços convulsos de Geraldinho Estopa. Ele somente se deu conta de toda revolta quando estava rolando pelas escadarias forradas de carmesim direto para a realidade plebeia da rua.

As estátuas eram seguranças atarracados, gritando palavrões nada lisonjeiros para o doidinho. Geraldinho Estopa repreendeu-os com a altivez nata dos grandes monarcas:

-Deus ainda está comigo! Perdida a batalha, não a guerra!

Atravessou a rua, um tanto atarantado é verdade, e foi tomar posse na Biblioteca Nacional.

Gleidson Riff
Enviado por Gleidson Riff em 31/01/2020
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