A HERANÇA FABULOSA

A HERANÇA FABULOSA

"Cicinho" era o tipo do garoto arrogante, presunçoso, nascido "em berço de ouro" e com "o rei na barriga". Seu avô dera o chamado "golpe do baú" -- melhor dizendo, "do cofre" -- pois estávamos nos anos 70, de flores, paz, amor e muita praia, isso pra quem podia. Seu "nono" casara com Estefânia, "dondoca" endinheirada e fútil, filha única do bem-sucedido empresário "doutor Frika", "selfmade man", título muito usado na época para empreendedores que cresceram sozinhos. O milionário tinha "grana" a rodo, diversas empresas, fama, etc... só não tinha paz !

Naquele momento seu bisneto nojento, verdadeira "praga" mirim, se esmerava em perturbá-lo, sem piedade:

-- "Olha só, "vovô", essa notinha da titia no jornal" !

Era mais uma fofoca horrenda de "colunistas frescos" -- que detestavam mulher -- "detonando" sua família. Na foto, jovem de minisaia fazia um lanche no calçadão da Avenida Atlântica, toda à vontade, a "barata" (aranha, perereca, borboleta ou sei lá o quê) à mostra entre os pernões descuidadamente abertos. "Frikassolles se oferece ao sol", berrava o título, com pequeno "close" mais revelador ainda da "vergonha" cabeluda exposta. Em outra página, mais fofoca: a filha dele, na Europa, fôra "clicada" tomando banho na "Fontana di Trevi", a cinquentona enxuta só de "soutien" e calcinha, embriagada e meio fora de si. Findou numa cela romana !

Frutticollino Ambrósio Frikassolles acordara de mau humor... nenhuma de suas 3 netas o convidara para passar o Natal com ela e o Ano Novo se aproximava com êle vivendo a mesma milionária solidão de todos os demais anos. Mas receava findar seus dias na Terra com a parentalha brigando por sua fortuna em cima de seu cadáver e, por isso, preparara o testamento, a ser lido naquela manhã, último domingo do ano, no luxuoso apartamento duplex à beira-mar, em plena Avenida Atlântica, que Ipanema era para esnobes e políticos ladrões e êle não era nenhuma das 2 coisas. Fizera sua fortuna com sorte, competência e muito trabalho, enquanto a filha única só se divertia.

Agora mesmo a balzaquiana se esbaldava na Europa... porém, o que tinha por lá que nosso país não possuía ?! Castelos ?! Pelo amor de Deus... prédios como o da Quinta da Boa Vista, o dos Correios na Praça XV ou o do Ministério da Guerra na Praça XI eram exatamente iguais ! Vinhedos, igrejas, cidades antigas ?! Ora, vejam só... atravessar meio Mundo só para ver uma torre de ferro, um lago com estátuas, outra torre "cai não cai", isso gastando fábulas em dinheiro suado !

A manhã de domingo ía alta, o Rio continuava lindo lá fora e um ar de borrasca -- com raios e trovoada -- se fazia sentir no amplo salão decorado à moda antiga, com a imensa mesa de carvalho preenchida de um lado pelas 3 jovens netas , uma ainda solteira, todas passando dos 30 anos e no lado oposto 3 bisnetos, um casal mais um menino serelepe, alegria do bisavô. Iniciando a leitura oficial do testamento, o ancião lamentou a ausência da filha ingrata, com o tabelião -- de testemunha -- a declarar que isso não era empecilho. No documento, a primeira surpresa: o velho doava para o casal perdulário somente a piscina do duplex de 5 milhões e mais... 2.222 reais (o fato sucedeu recentemente) para o marido chato, pedante e inútil da filha, além de quantia semelhante para esta, um verdadeiro espanto.

A jovem neta Luciana, que amava uma fofoca, pediu licença ao vovô, precisava atender uma chamada urgente. Escafedeu-se para a cozinha e, de lá, ligou pra mãe:

-- "Mamãe, o "vô" está lendo o testamento" !

-- "Desgraçado, não me avisou nada" !

-- "Claro, "mother"... vocês não saem de Paris ! Olha, você não vai gostar nada da surpresa: deixou a piscina do apartamento pra vocês e 2.222 reais pro papai, essa parte eu não entendi... pra você foi só 222" !

-- "Duzentos e vinte dois mil ?! Miserável, velho sovina, ganhou 300 MILHÕES ano retrasado, na Megasena" !

-- "Não, mamãe, du-zen-tos e vin-te dois R-E-A-I-S... disse que é só isso que você vale"! Alô, mamãe ?! Alô, alôôô..."

A mãe desmaiara, do outro lado do Atlântico e ficou sem saber que a exigência maior do testamento -- para receber polpuda ajuda mensal, via herdeiros -- era ter que, todo dia, esvaziar com baldes a piscina que ela amava tanto. Passava seus dias à beira dela desde a juventude, ouvindo com o então namorado vagabundo as canções do baiano de "Aquele Abraço" e de tantos outros sucessos. Luciana voltou à sala ás pressas, não podia perder um segundo daquela história, o "circo ía pegar fogo", tinha certeza disso.

A quem destinaria o megaprêmio da Sena, que ganhara apostando os improváveis números 1-2-3 e 14-15-16, que lera anos antes numa revista (*1) de Matemática ?! No artigo se argumentava que qualquer sequência tem as mesmas chances de ser sorteada, sejam números ligados ou de forma aleatória. E trazia como exemplos um "desenho em X" com os números 1-10-25-26-51-60 e um outro que assinalava "em cadeia" 1-3-5 e 21-23-25. Apesar das opiniões contrárias e de milhões de apostas diferentes, êle ganhou sozinho !

A volta da solteirona à sala incomodou o idoso, que pigarreou e continuou sua explanação, falando diretamente a ela:

-- "Quanto a você, Luciana, deixo um belo carro... está lá na garagem do prédio, pode ir ver, se quizer" !

-- "Oh, vovô querido, que emoção... é uma Ferrari, um Aston Martin, um Lamborghini amarelo" ?!

-- "Não, queridinha, é um carro de boi, sua "vaca", que está torrando todo meu dinheiro em pifpaf, em baralho" !

-- "Quem disso isso ?! Isto é uma calúnia" !!!

-- "Tá nos jornais de fofoca, que você não lê, sua perdulária... e que também nem usa calcinha, desavergonhada" !

Ela mudou de côr mas, para manter as aparências, blefou:

-- "V-v-vou mo-mostrar pro senhor agora se eu...", subindo na cadeira.

-- "Nem ouse, sua doida ! Não é à toa que perde tanto no jogo, nem aprendeu a mentir" !

-- "Com licença, vovô, vou me retirar... não estou aqui para ser insultada" !, e levantou, se dirigindo para a imensa porta trabalhada em carvalho. O velho soou uma campainha e 2 enfermeiros "do tipo armário" surgiram do nada, já estavam à espera do sinal.

-- "Levem essa "periquita maluca" pra casa de repouso, só sai de lá quando eu quiser" !

Com roupa verde brilhante e chapéu de paetês com penacho parecia uma cacatua... arrastaram a pobre de costas, berrando "me soltem, seus gorilas" ! As 3 crianças se divertiam, contudo suas mães, Mariana e Cristiana, se olhavam assustadas, sem saber como acabaria aquilo tudo. Novo soar de campainha e os brutamontes retornam com a jovem.

-- "Muito bem, podem ir... e você, sente aí e não dê 1 pio" !

-- "Para não perder mais tempo, pra você Cristiana, que me "empurrou" enfermeira pra me dar banho -- sem eu lhe pedir -- vou destinar minha lavanderia. Vai trabalhar lá como estagiária, "meter a mão na massa" e só quando conhecer todo o serviço assumirá a gerência, sem poder DEMITIR ninguém, são todos ótimos funcionários. O mesmo digo à Mariana... vocês precisam conhecer O VALOR DO TRABALHO, pra não gastar dinheiro em tanta bobagem. Mariana "vai pôr a mão na graxa", a loja de mecânica agora é sua, está bem localizada, tem ótimo faturamento e clientela garantida.

-- "Quanto aos meus bisnetos, esse "projeto de malandro" que é cópia do avô -- não é por acaso que se chama Aécio -- vai para um colégio interno de gabarito, só fica com os pais nas férias, até se formar em algo útil.

Minha princesinha Glória Maria Estefânia Regina herdará essa mansão -- a garota de 5 aninhos ouve sem entender coisa alguma -- e pro "peste" do Marcelinho, que me derrota sempre nos "games", deixo um superPLAYSTATION 3, com 50 fitas novas" !

-- "Valeu, "bisa", isso é que é presente" !

-- "Só isso pro meu filho"?!, protesta Cristiana. E continua, revoltada... "e a MegaSena, vais doar pr'um asilo"?!, completa, cheia de sarcasmo na voz.

-- "Devia doar mesmo, é pra onde vocês irão me enviar, assim que puderem... meus 320 milhões -- rendiam milhão e meio ao mês, com o "Leão" abocanhando fortunas, pra destinar a políticos -- vão para o "Lilico"!

-- "O quê... pro "Lilico" ?! Velho doido, a lei não permite isso" !, berra "Lu".

-- "Pro Lilico" ?!, repetiram as irmãs. "Pro Lilico"?!, secundaram as crianças, com Luciana de pé, mãos na mesa, gritando:

-- "As leis brasileiras não permitem esse absurdo" !

-- "No Brasil tudo é possível, presidentes torcem e retorcem dezenas de leis... nos Estados Unidos pode e aqui também" !

"Lilico", ouvindo tantas vezes seu nome, saiu de debaixo da cadeira do velho e poz as patas dianteiras na coxa dele.

-- "Posso saber como um viralata vai gastar tanto dinheiro" ?!

-- "Marcelinho vai cuidar da grana e do cachorro" !

-- "Oba, "vovô"... dá pra comprar quantas fitas de videogame" ?

-- "A fábrica toda, querido... no Brasil e no Japão" !

-- "Não pode, é só uma criança... vou embargar esse testamento idiota, o senhor não tem mais lucidez, maluco"!, esbraveja Luciana.

-- "Se der mais 1 palavra vai daqui pr'um manicômio ! O meu contador está encarregado de dirimir qualquer dúvida, de resolver qualquer contenda. Era só isso" !

No dia seguinte os jornais do Rio faziam manchete da estória toda, a víbora da Luciana "apimentara" o caso, revelando costumes íntimos do avô -- que adorava andar desnudo, só de ceroula -- a fim de que o declarassem insano e com isso se interditasse o funesto testamento. Alheio a tudo "Lilico", agora bilionário, só queria carinho, dinheiro não significava coisa alguma. Luciana findou num hospital neurológico, com sintomas de depressão e correndo atrás de um cão imaginário.

"NATO" AZEVEDO (em 29/dez.. 2019, 15hs)

OBS: (*1) a inspiração surgiu de um texto na revista "CÁLCULO - Matemática para todos", edit. SEGMENTO, nº 15, 2012, SP)

A imagem da revista poderá ser vista em meus espaço no FACEBOOK, acessar... CINCINATO.PALMASAZEVEDO