Um Conto de Natal
Um Conto de Natal
Devido à crise que assolava o país naquele final de ano, a agência estava lotada de homens das mais variadas idades, quase todos usando barbas postiças e gorros vermelhos. Mas nenhum era ameaça para P.N..
P.N. já era antigo no ramo, há mais de doze natais trabalhava no mesmo shopping, no centro da cidade, e era uns dos poucos que podia orgulhar-se de ter uma longa barba verdadeira. Neste natal, uma vez mais estaria no shopping, e justamente no dia vinte e quatro de dezembro, praticamente seu último dia trabalho, ocorreram os eventos que lhes conto nas linhas que seguem.
Chegou ao shopping ás nove e meia da manhã, trocou algumas palavras com o segurança, depois com o gerente e logo se meteu no banheiro. Vestiu a roupa já um pouco desgastada pelo uso, e com passos confiantes, desviou do trenó feito de isopor com renas de madeira e sentou-se no trono, em companhia da ajudante. A ajudante, chamada A.N., era muito mais jovem que ele, tinha os seios pequenos e pontudos que podiam ser percebidos pelo vestido vermelho que usava.
P.N. ficou ali, sentado, por longos minutos, esperando que as portas do shopping se abrissem. O trono ficava praticamente no meio do shopping, no térreo, ao lado de uma loja de jóias, em frente à praça de alimentação. Chegavam os primeiros visitantes, a maioria idosos em suas caminhadas matinais, algo entediante. Ao meio-dia a coisa ficava um pouco melhor, e o velho P.N. observava desde seu trono, as muitas pessoas que, na praça de alimentação, mastigavam nervosamente seus hambúrgueres e batatas fritas, tomando muito refrigerante e Milk-shakes.
As coisas ficaram realmente boas depois das três horas da tarde, quando as crianças, levadas pelos seus pais, formaram uma pequena aglomeração ao redor de P.N. .
A.N. tentou organizar uma fila, mas não parecia ter muito êxito, e a briga que começou entre as crianças havia chegado aos pais, que discutiam, com verdadeira paixão, quais seriam os critérios para a ordem da fila. Primeiro pareceu uma boa idéia que a fila fosse organizada por tamanho, do menor ao maior. Uma senhora, obesa, gritou em protesto. Sua neta, que se assemelhava a uma Kombi, deveria ser a primeira, pois era questão de cavalheirismo que as mulheres fossem as primeiras. Um homem, algo calvo, não aceitando o cavalheirismo, algo antiquado, afirmou que seu filho, que usava óculos, deveria ser o primeiro, pois afinal, era portador de uma deficiência. Depois uma jovem negra insistiu que tudo se tratava de racismo e ameaçou processar A.N. e todo o shopping.
Para alegria de P.N., que gostava dessas situações de tensão, quando o ser humano revela sua mais profunda personalidade, a discussão durou varias horas, até que em comum acordo, foi decidido que primeiro seriam atendidos os filhos dos coxinhas (que eram maioria e democraticamente venceram) , e depois os filhos de esquerditas ( que eram menos de três, esquerdistas, por algum motivo, parecem desprezar o natal).
Em movimentos repetitivos, como máquinas, as crianças, uma após a outra, se acercavam a P.N., sentavam em seu colo e faziam seus pedidos. Nada anormal, os pedidos consistiam em artigos tecnológicos, ás vezes algum brinquedo, até que um menino, de seis anos mais ou menos, sentou no colo de P.N., que pressentiu que algo não estava certo.
“E então, pequenino, o que você quer neste natal?”., perguntou P.N., e o menino , depois de hesitar por alguns minutos, respondeu, com a seriedade que parece algo cômica quando surge em uma criança tão pequena.
“Papai Noel, eu não quero brinquedos, nem celular, nem nada disso. Neste ano fui um bom menino, e tenho certeza que não poderá negar meu pedido”.
P.N. olhava o menino, qual poderia ser o pedido, afinal, com aquela idade muito pouco ou nada se sabe sobre os sofrimentos da vida, sobre as ilusões que são destruídas dia após dia, pela frustração que o tempo provoca, pela impotência da vida diária.
“ Papai Noel, eu quero que o meu pai morra”.
A frase saiu curta e seca, e P.N. demorou alguns minutos para entender a gravidade daquele estranho desejo.
“Rapazinho, por que você quer algo assim? Afinal, seu papai ama você, te protege, faz tudo pelo seu bem estar”.
“ Pois bem, ontem viemos a este mesmo shopping, naquele momento eu queria algo simples, um celular com jogos, algo assim, e quando pedi a ele que me levasse até você, ele se negou. Disse que Papai Noel não existia, uma besteira para crianças, que sua barba nem mesmo era real, que tudo se tratava de uma artimanha capitalista. Naquela mesma noite, depois de muito chorar, fui consolado por minha mãe, que vendo minha aflição obrigou meu pai a trazer-me novamente ao shopping, falar com o senhor. Mas veja só, eu já não era o mesmo, algo mudou em mim, acho que cresci, pois o que quero agora, é a morte do meu pai”. Depois de contar a sua história o menino apontou para um homem calvo, que usava uma camisa pólo.
P.N. escutou tudo com sincera atenção, como fazem os devotos na missa de domingo. Como poderia dizer que a barba, a barba que conservava há doze anos, exclusivamente para trabalhar naquela importante e bela época do ano, era postiça.P.N. meteu a mão no bolso do casaco, retirando um pequeno frasco que continha um líquido de cor azul.
“ Pequenino, este frasquinho eu mesmo ia usar hoje a noite, depois da ceia com a M.N. , mas vejo que o seu caso é mais urgente, e como você foi um bom menino...” , P.N. entregou o frasco para o menino que rapidamente colocou em seu próprio bolso, e P.N. , então, continuou com a explicação, “ hoje , durante o jantar, você deve colocar , discretamente, todo o conteúdo deste frasco no copo de seu papai, o liquido não tem sabor, não se preocupe que ele não irá suspeitar de nada”.
O menino agradeceu P.N., deixando-o sozinho, até que poucos minutos depois, outra criança subiu ao seu colo, sendo recebida pelo enorme sorriso de Papai Noel, que pensava. “Afinal, não é disso que se trata o natal?”.
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