UMA GRANDE DESONRA

Isto ocorreu numa época não tão longíqua, numa cidadezinha do interior que não citarei o nome para não expor pessoas tão “nobres”. Preciso preservar o quanto possível a imagem e honra de homens e mulheres que vivem suas vidas de modo tão doce, parecendo refrescando-se num doce final de semana em Aruba. Tão despreocupados que até. Enfim, passarei aos fatos e deixarei minhas impressões. O fato é que me acendem chamas de um passado machucado pelos ataques indiretos que sofri através do desprezo sutil e alvissareiro de sorrisos falsos destas pobres almas.

Ele se aproximou e tocou minha mão.

-Parece que temos muitas diferenças –disse no meio do culto em comemoração ao jubileu da igreja - Mas isso não deve impedir de continuarmos irmãos, não é?

Apontei para o andar de baixo, porque eu estava na galeria.

-Vamos conversar lá embaixo?

-Então...é que hoje temos apresentação – disse o pastor - Não pega muito bem, tudo bem?

Eu acenei em concordância e voltei meu olhar à apresentação da orquestra no púlpito da igreja.

De soslaio percebi Marcos, o lacaio que acompanhava o pastor quando este andava pela igreja, no meio dos cultos de aniversários, fazer um muxoxo na minha direção. Mais um deboche, não é? Vai desdenhando vai!

-Nos vemos na semana, não é? – disse o pastor no carro, já do lado de fora, ao final do culto.

-Ah, na certa. – Eu disse, dando um muxoxo para o lacaio que carregava a pasta do pastor.

Marcos sorriu.

Quando eu já adentrava ao carro, o pastor me chamou.

Eu olhei. Ele passava do meu lado, dirigindo o carro, o lacaio no banco, ao lado dele.

-Eu vou querer que você traga uma reflexão sobre a Palavra de Deus na quinta-feira, pode ser?

Eu assenti pensando que ainda teria quatro dias para refletir em algo da Bíblia para poder trazer a Palavra de Deus a toda a congregação.

Durante a semana me preparei como um louco. Li comentários, assisti a vídeos, mas a cara de Marcos não me saia da mente de tal modo que não pude me concentrar no que considero uma boa reflexão sobre as verdades que havia estudado no texto bíblico que havia separado à congregação.

O texto dizia: “Perdoais as nossas ofensas, assim como temos perdoado a quem nos tem ofendido”.

Mas, no dia da Palavra lá estava eu para pregar, já no púlpito. Já havia feito a leitura da passagem bíblica quando vi Marcos de pé, à porta da igreja, me olhando, mão no queixo, cabeça lateralmente caída.

Eu então não pude me segurar. Joguei a bíblia no chão. Olhei para as pessoas da igreja que me olhavam abismadas.

Olhei para o pastor e já ia descendo os degraus do pulpito, quase tropeçando.

-Pegue essa bíblia. Nela marquei todos os textos que falam de perdão. Por que devemos perdoar? Não sei, ainda não. Mas será mesmo que o perdão existe de verdade a nós humanos? Jesus perdoou. E nós, podemos mesmo?

Eu voltei e peguei o microfone.

Mas Marcos o tomou de mim.

-Solte! Solte! Deixa eu falar! -eu disse.

Ele soltou.

No microfone, o pastor já de pé.

Olhei fixo a congregação.

-Perdoem. Ao menos esse ato de desonra a essa igreja que sempre me tratou tão bem! Oh. Que ironia. Muito bem, senhores e senhoras. A igreja cheia de amor, que sempre me menosprezou. Nunca me escutou. Vocês que sempre falam de amar! Ah, vocês, tão amorosos. Não sabem sequer o que é perdoar, agora tem essa oportunidade! Perdoem-me, por favor!

-Acabou? – Disse o pastor tocando minha mão e pedindo a Marcos que se afastasse.

-A minha história aqui acabou -eu disse, entregando o microfone ao pastor e sai da igreja.

Ainda bem que eu não tinha me apegado a ninguém dali. Não tinha família, amigos, ali dentro. Isso era maravilhoso. A desonra tem dessas coisas. Um dia a gente tem uma oportunidade e acaba trazendo a infâmia. Em total descrédito eu saí dali. Nobre irmandade! Que eles me perdoem!

Alexandre Scarpa
Enviado por Alexandre Scarpa em 12/11/2019
Reeditado em 12/11/2019
Código do texto: T6792833
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