O Funcionário do Mês
"A vida me fode, não nos damos bem. Tenho que comê-la pelas beiradas, não tudo de uma vez só. É como engolir baldes de merda."
-Charles Bukowski
A instituição consiste em uma sala central, não muito diferente do lobby de um hotel, e depois inúmeros corredores que se estendem por todos os lados. Na sala central fiz o cadastro e me entregaram a credencial de visitante. Depois percorri um sem-número de corredores, onde os mais diferentes tipos de loucos, trancafiados, gritavam variados absurdos. Provavelmente teria me perdido, se não fosse pela ajuda de Walter, o simpático enfermeiro, que enquanto me conduzia até a cela de M., fez uma interessante observação:
-A loucura tem muitas ramificações, imagino que se percorrêssemos até o fim cada um desses corredores, daríamos com o meu quarto, ou o da minha sogra, ou o de qualquer um dos supostos normais – e olhando para mim, completou - ou até mesmo com o quarto do senhor. Todos estão loucos e o mundo nada mais é que um enorme hospício.
Quando chegamos a cela de M., Walter entregou-me um desentupidor comum.
-Se ele não quiser falar, entregue-lhe o desentupidor. O homem é obcecado com essa coisa.
Entramos, a cela era muito diferente do que havia imaginado. Espaçosa, confortável, M. estava sentado sobre a cama. Quando o enfermeiro se retirou, deixando-nos a sós, pude observar aquele homem.
M. era de baixa estatura, quase anão, suas pernas pendiam da cama, balançava-as vagarosamente. O homem estava completamente desnudo, seu corpo parecia frágil, exceto, talvez, pelos pés, que eram enormes. Seu nariz anguloso, os olhos vesgos, calvo e orelhudo. Tinha em geral um aspecto terno, muito diferente do monstro que os jornais descreviam. A principio atribui isso a um exagero com a única e nefasta intenção de vender jornais, porém, durante a conversa que tive com M., na qual narrou-me – com um português vulgar e sem estilo algum – sua história, pude perceber-lhe um sorriso quase imperceptível sobretudo quando contava as partes mais macabras, revelando sua personalidade sádica, digna das infames alcunhas que lhe dedicaram as manchetes dos já citados jornais amarelos.
-Sou do Píaui, Picos. Você conhece Picos? Fica perto de Tuntum. Você conhece?
Desta maneira iniciou a conversa M., decidi mentir e afirmei que sim, conhecia Picos como a palma de minha mão. Acredito que despertei certa simpatia em M., assim que deixei o desentupidor num canto do quarto.
-Cheguei a São Paulo em mil novecentos e noventa nove. Com um primo arrumei meu primeiro emprego na construção civil. Não era para mim. Encontrei-me mesmo foi na limpeza, primeiro fazendo faxina numa escola, depois fui trabalhar num hospital, e meu último trabalho foi na limpeza do shopping. Eu sozinho fazia o trabalho de cinco funcionários, portanto, não entendi quando contrataram o ….o…..DESGRAÇADO!
Neste momento assustei-me, mas pude escutar uma risadinha do outro lado da porta, Walter escutava a tudo no corredor, e seguramente viria a meu socorro caso fosse preciso.
-Foi numa segunda. Seu Gusmão, o gerente do shopping, veio com um sorriso na cara, disse que arrumara um ajudante. Elias – esse era o nome do desgraçado – estendeu aquele braço peludo, peludo igual uma besta-fera, e apertou-me a mão com tanta força que quase me rompeu o mindinho.
M. exibia o mindinho, indicando o lugar onde teria sido fraturado.
-Veja bem, não se aperta a mão de um faxineiro, as minhas mãos são minha ferramente de trabalho, uso-as da mesma maneira que o violinista as utiliza. Para fazer arte! Elias apertou-me a mão na maldade, caso pensado para me prejudicar. O primeiro problema foi logo no dia seguinte. Limpei o banheiro, e pensei até em tirar uma foto. Banheiro limpo é a coisa mais linda que tem. Não é que o Elias entra no banheiro, pega todo o papel higiênico que estava no cesto de lixo e espalha pelo chão? Foi sim, espalhou o papel sujo por todo o chão do banheiro, e enquanto fazia isso, sorria, zombava. Depois falou : “ eu é que vou limpar esse banheiro aqui!” e dizendo isso, o Facínora, o Crápula, o Filho-de-uma-Cachorra foi recolhendo tudo do chão! E o banheiro ficou limpo mesmo, e triste, devo reconhecer que ficou mais limpo do que antes. Engoli meu orgulho ferido, e fui-me embora.
Neste momento pude perceber que uma lágrima escorria pelo rosto de M..
- Passou-se uma semana sem nada acontecer, ele no banheiro dele e eu no meu. Até que no sábado, dia de maior movimento no shopping, o Elias grita, chamando eu e o gerente, pensei que havia acontecido uma desgraça, mas a desgraça mesmo aconteceria só no dia seguinte – com essas palavras o rosto de M. foi tomado por um ar sombrio – eu e Seu Gusmão parados no banheiro e Elias agachado ao lado de um vaso sanitário. “ - que que há, Seu Elias?” , disse o gerente, e Elias, olhando-me, disse: “ - Seu Gusmão, eu mesmo limpei esta privada, o senhor vê? Eu sou o melhor limpador de privadas do mundo, está limpa, companheiro? “ , disse isso apontando para mim, e diante de Seu Gusmão, para evitar encrenca, concordei com o Cão, que disse : “ - está tão limpa que eu posso comer nela”.
M. permaneceu calado por alguns minutos, entreguei-lhe o desentupidor e ele logo recomeçou a falar.
- Eu não acreditei, ele repetiu umas quatro vezes que a privada estava tão limpa que poderia comer nela, até que tirou uma colher do bolso, e mergulhando a colher na privada, e depois retirando-a, meteu-a na boca. Juro, ele fez isso três ou quatro vezes, até que Seu Gusmão, horrorizado, retirou-se. Eu fiquei ali parado, atônito, observando. “ Vê? Eu sou muito melhor que você! Ô juvenil, quando você limpar uma privada e comer nela, você estará no meu nível” e soltou uma gargalhada o desgraçado. Quando cheguei em casa fui direto buscar o revólver que mantinha guardado na caixa de sapato. Se não fosse o melhor dos faxineiros, deveria morrer. Encostei o cano gelado na têmpora, até que me ocorreu algo: sou o segundo melhor, se eu matar o primeiro, ocuparei seu lugar. E foi quando decidi que iria matá-lo.
Neste momento M. torna-se bastante violento, fazendo uso do desentupidor , atacou-me e se não fosse pelo enfermeiro Walter, provavelmente teria me matado. Por sorte, já havia coletado tudo que precisava saber sobre M. O desfecho da história já é bastante conhecido de todos, pois foi noticiado por meses em todos os jornais do país e até do exterior, assim que se faz terminantemente desnecessário mencioná-lo aqui.
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