O Bispo e o Fazendeiro – 2

A notícia de que Rafael, um assíduo fiel da paróquia de Sant’Ana, havia ganhado na loteria correu que nem rastilho de pólvora e chegou aos ouvidos de Dom Amorim, bispo da diocese. Este por sua vez, em conversa com o padre Onofre, responsável por aquela paróquia, deixou claro que gostaria de estar com Rafael e que se fosse possível providenciasse para trazê-lo até ele, pois gostaria muito de conversar com aquele fiel escolhido de Deus.
Assim, passados alguns dias, lá estava Rafael diante de Dom Amorim, ouvindo-o. Não entendia como que de uma hora para outra, o bispo passou a lhe dar tamanha atenção. Ainda recordava-se que há bem pouco tempo atrás, quando tentou um encontro, não foi nem recebido. Qual seria a razão da radical mudança? Seria pelo fato de ele ter acertado o prêmio acumulado da loteria? Iria ele lhe pedir dinheiro para as obras da igreja? – Pensava ao mesmo tempo em que escutava aquele homem falar.
Por sua vez, Dom Amorim, um dedicado religioso seguidor da doutrina cristã, sendo conhecedor da simplicidade de Rafael e julgando sê-lo ingênuo e de fácil manipulação, resolveu protegê-lo. Não deixaria passar a oportunidade para alertá-lo sobre os falsos amigos e interesseiros que provavelmente tentariam se aproximar dele para tirar alguma vantagem, usando da famosa e antiga conversa de cerca Lourenço para enganá-lo. Por isso o encontro.
O bispo parecia ansioso na busca de encontrar as palavras para ajudá-lo, mas continuava conversando calmamente. Falava de vários assuntos ao mesmo tempo sem se prender a um em específico e emendava um problema atrás do outro da diocese, quase o deixando tonto. Até que conseguiu entrar no assunto envolvendo o dinheiro que ganhara.
- E então, meu filho. Já pensou a respeito do que fazer com o dinheiro que ganhou na loteria?
- Estou comprando a fazenda Outeiro Santo. Pretendo plantar e lidar com gado.
- É aquela fazenda abandonada que fica aqui ao norte de Diamantina?
- Essa mesma. O senhor a conhece, Dom Amorim?
- Conheço, mas não é um pouco longe, meu filho?
- Nem tanto, é aqui mesmo no Vale do Jequitinhonha. Com apenas duas horas a cavalo e estamos aqui na cidade. De automóvel é bem mais rápido.
- Ah! Muito bom. É uma região que está necessitando muito de ajuda. Acredito que seu investimento naquela região vai contribuir bastante para o progresso dela.
- Foi o que eu pensei. Na verdade o corretor que me procurou para fazer o negócio achou que estava me enganando, mas não estou comprando gato por lebre. Sei que vai ser preciso trabalhar muito.
- Com esse seu entusiasmo, Rafael, eu tenho certeza de que a sua fazenda vai ficar bonita e produtiva como nunca esteve.
- Eu sei disso, seu bispo, e para isso eu conto com a ajuda do senhor.
Era o que Dom Amorim queria ouvir. Tendo-o próximo de si, poderia ajudá-lo e protegê-lo dos aproveitadores.
- Pode contar sempre, Rafael, não só com a minha ajuda, mas também com a de Deus. Você vai ver que trabalhando juntos tudo se transformará.
- Nada disso, Dom Amorim. Só quero contar com a sua ajuda.
- Como assim? Não o estou entendendo.
- É simples. O senhor conhece muito bem aquele pedaço de terra e não vai poder negar; enquanto Deus esteve lá sozinho, nada foi feito. Não vai ser agora que ele irá me ajudar.
- Como não, meu filho? É evidente que Ele vai lhe ajudar.
- Nada disso, mas o senhor sim poderá me ajudar e muito.
O bispo, não querendo contrariá-lo, resolveu concordar e escutar o que ele pretendia. Com o tempo o faria entender o quanto era confortante estar com Deus.
- Está bem, mas o que eu posso fazer para ajudar você?
- Preciso que na próxima missa o senhor esteja presente e use a pregação em nosso favor.
- Não estou entendendo muito bem isso de “nosso favor”. A onde você quer chegar?
- Vou lhe explicar. Quero que o senhor incentive e faça ver aos fiéis, que também são meus empregados, para não fazerem questão das exigências trabalhistas. E como eu já ofereço a eles casa e comida lá na fazenda, não há necessidade de receberem mais do que o salário mínimo.
Dom Amorim entendeu o quanto estava enganado sobre a ingenuidade de Rafael e chamou-lhe a atenção severamente. Afinal, como poderia imaginar que o dinheiro tivesse transformado tanto aquele homem simples que ele pensava conhecer.
- Quando eu estou pregando não me canso de repetir: todo filho precisa amar, respeitar seu próximo e estar em contato com as coisas de Deus, Rafael. Como posso agora de repente fazer o que você está me pedindo? Não posso ir de encontro a tudo que prego e acredito só para compactuar com sua ganância, meu filho.
Rafael, demonstrando não estar nem um pouco preocupado com o que Dom Amorim acabava de falar, continuou com sua tentativa de convencê-lo a lhe ajudar.
- Lembre-se de que estou disposto a lhe dar comissão sobre os lucros, sem contar que pretendo fazer algumas reformas por aqui. Basta para isso que os convença de que não precisarão vir à cidade para fazer compras, pois estou mandando fazer, lá, uma grande mercearia onde eles terão de tudo. Da agulha ao chapéu.
- Rafael, todo esse dinheiro o está cegando e não lhe deixa raciocinar. Pense melhor no que está querendo, o que você vai fazer é pior do que escravizar.
- Isso é uma questão de ponto de vista seu, Dom Aguiar. O que estou tentando fazer é que o meu dinheiro retorne aos meus cofres, e não vá parar em mãos alheias. Tenho absoluta certeza de que assim será muito melhor para todos.
- É lamentável o que acabo de ouvir, mas vou rezar para que o Senhor o ilumine e o traga para a realidade cristã. Mesmo assim peço que reconsidere essa sua atitude e mude sua posição.
- Lamentável digo eu, Dom Amorim. Pense bem. O senhor precisa fazer o que lhe pedi. Vai deixar passar a oportunidade de ganhar um dinheiro extra que não é pouco, com o qual poderá reformar toda a igreja e concertar a casa paroquial?
- Rafael, meu filho, as coisas não funcionam dessa maneira. Tenho certeza de que eu e o padre Onofre conseguiremos o dinheiro para as reformas sem ser preciso compactuar com a exploração dos seus empregados. Torno a lhe pedir, reconsidere. Será melhor para você. Saiba que Deus está vendo tudo, meu filho.
- Lamento muito que o senhor tenha tomado essa decisão, Dom Amorim. Da minha parte, não só continuarei com meu projeto, como alertarei meus empregados para que não façam doações para suas obras.
Fernando Antonio Pereira
Enviado por Fernando Antonio Pereira em 30/09/2019
Código do texto: T6757450
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