Insatisfação geral

Amanhecera. José um renomado escritor acordara inspirado, mas não muito disposto a escrever. Porém tinha que adiantar ao máximo o seu texto, pois aquele seria o último fim de semana que passaria escrevendo na fazenda. O final do livro pensava fazê-lo dentro do próprio museu em que trabalhava, palco onde praticamente desenrola toda sua história.
O dia estava muito bonito, desses, que não dá para ninguém botar defeito, mesmo assim, encaminhou-se preguiçosamente em direção a varanda resmungando, sem sequer imaginar que a reclamação era também o tema do dia entre os seus pertences.
Uma cadeira de espaldar alto, a mesa de jacarandá com tampo de vidro, um notebook, uma impressora, as folhas de papel, um grampeador, o velho telefone, um cachimbo inglês, um isqueiro, o pacote de fumo e um cinzeiro de Pau Brasil, peças integrantes daquela comprida e ampla varanda, comentavam suas mazelas, cada um querendo mostrar que o seu sofrimento era maior que o do outro. Sem, contudo encontrarem um bom termo para a situação.
- Pessoal, acabou a moleza, o homem está vindo para cá. – Avisou o telefone.
- Xi! Estou pressentindo que hoje terei que imprimir muito. – Resmungou a Impressora.
- Espero que se mantenha calma e não desregule. Estou cansado de ficar engastalhado em você. Sempre que isso acontece saio todo amassado, rasgado e vou parar no lixo. – Lembrou o papel.
- Pois eu vou adorar se isso acontecer. Só assim não perco meus dentes. – Desejou o grampeador.
- Cachimbão meu velho companheiro de guerra, se prepara também; já, já você vai levar fumo. – Fez questão de lembrar o notebook.
- Não gosto nem de lembrar. Toda vez que ele me abre, perco parte dos meus cabelos. O jeito é rezar para que hoje ele tenha esquecido o fósforo, só assim não pegamos fogo. – Resmungou o pacote defumo.
- Melhor mesmo é que ele pegue o telefone e não pare de falar. – Torceu o cachimbo.
- Também acho. Assim ele não me bate desesperadamente. – Concordou o notebook e também reclamando. – Ainda estou todo dolorido da sessão de ontem.
- Vocês são muito engraçados. Esquecem que se isso acontecer eu é que sou obrigado a sentir aquele mau hálito, que mais parece o bafo do diabo. Tomara que ele comece logo a fumar e a escrever, assim ele não me agarra com aquela mão fedida e eu continuo cheiroso. – Disse o telefone.
- Agora sim, alguém disse algo que prestasse. O bom mesmo é que ele fume. Dessa forma, ao invés de sentar em mim ele vai andar de um lado para o outro nesta longa varanda e quando cansar vai se debruçar no parapeito me deixando livre por mais tempo. – Falou a velha cadeira.
- Egoístas, só pensam em vocês. Esquecem que ele ao me usar, respiro fumaça, queima meu corpo, deixa sarro na minha boca e me morde o tempo todo. – Reclamou o cachimbo.
- Sofredor sou eu. Não se esqueça, nobre cachimbo, que a todo instante recebo seu golfado de cinzas e o restante de suas brasas por todo meu corpo, deixando marcas irreparáveis. – Afirmou o cinzeiro.
- E eu, o que digo? Suporto o peso de todos vocês, estou fosco, com algumas lascas nas bordas, continuo sendo arranhado a cada vez que os puxam ou os arrumam em cima de mim, estou manchado de nicotina e tenho cinzas acumuladas à volta de quase toda minha extensão. Aguento tudo isso, e ainda por cima sou obrigado a ouvir todo dia suas reclamações. – Disse o tampo da mesa.
- Cala essa boca seu intruso do inferno! Está reclamando porquê? – Gritou a mesa.
- Mas o que isso? Sempre nos demos tão bem. Por que essa agressividade assim tão fora de hora? – Surpreendeu-se o tampo de vidro.
- Eu sim é que sou a mais prejudicada, meus donos durante todos esses anos me torturaram, rabiscaram-me, furaram-me, cortaram-me, queimaram-me e quando me racharam trocaram a minha cabeça por você, um vidro vagabundo de quinta categoria. Tem algo pior que isso? – Lamentou-se a mesa de jacarandá.
- Vê-se logo que você não sabe o que diz, minha cara. Graças a mim você continua tendo utilidade. Vagabundo mesmo é esse nosso dono, que quando está aqui, não faz nada além de ficar sentado nessa cadeira o dia inteiro escrevendo baboseiras. – Defendeu-se o grosso tampo de vidro.
- Pensei que fossem me esquecer. – Reclamou a cadeira – Na verdade quem mais sofre aqui sou eu. Olhem bem para mim. Vocês são muito jovens, por isso nem imaginam como já fui majestosa. Como acham que eu me sinto agora? Várias personalidades ilustres já me usaram; barões, condes marquesas e até ministros. Naquela ocasião eles sentavam numa almofada de pena de ganso, forrada em couro de cromo alemão, afixada a meu corpo e, diga-se de passagem, sem cheiro ruim. Hoje estou aqui bamba de tanto ele me gangorrear e com uma almofadinha de espuma picada envolta num pano fedorento, jogada encima de mim, e ainda por cima tendo que suportar o peso desse imbecil gordo e vagabundo que você acaba de mencionar, pode?
Nesse exato momento José chega ao portal da varanda e como estivesse ouvindo todas aquelas reclamações a seu respeito, falou alto e decidido:
“Deixa de preguiça e vai trabalhar José, que hoje você tem muito a escrever”.
Dizendo isso automaticamente pegava seu cachimbo em cima da mesa e o enchia de fumo.
“Onde será que coloquei os fósforos?” – Pensou José.
Fernando Antonio Pereira
Enviado por Fernando Antonio Pereira em 17/09/2019
Reeditado em 17/02/2020
Código do texto: T6747582
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