O doido de Gouvan
A narração que segue, recebi-a do Professor Gouvan, lente da Universidade de Brasília, a quem conheci há uns poucos anos. Além de amigos em comum, que são poucos, mas muito amigos, descobrimos um elo comum: O Coronel Hugo Hortêncio da Aguiar, com quem tratamos em tempos, lugares e, sobretudo, situações diferentes, e no entanto, tão convergentes, senão pungentes...Mas essa história fica para o Professor Gouvan contar sua parte, que é a mais apimentada.
Quanto à história da vez, devo confessar que me surpreendi mais com o coentro do que com a coca-cola.
A loucura como coragem.
Gouvan
Brasília, 08 de 2019
Vivíamos os anos oitenta, no tempo que os brasileiros viajavam de carro. Vinha de Fortaleza para Brasília. Caminho longo, estradas vazias, um carro ou outro depois de quilômetros de solidão. Guiava um Chevette SL, carro de luxo para os padrões da classe média da época. Posto de gasolina a cada 100 km. As estradas eram boas, mas de vez em quando, ainda encontrávamos trechos de terra batida. De Fortaleza para Brasília levava-se quatro dias se não houvesse contratempo. Eu e meus pensamentos, tinha tempo para olhar e pensar. Eram tempos de reflexão. No meio daquela solidão podia falar ao vento, falar mal da Ditadura sem medo de ser ouvido e denunciado por algum ‘dedo-duro’ de ouvido atento. Talvez por isso fosse tão prazeroso viajar dias sozinho.
A comida nos restaurantes, na beira da estrada, era sempre muito simples: arroz, feijão, galinha cozida com muito caldo e coentro. Às vezes tinha lombo de porco feito em panela de ferro e fogão de lenha, simplesmente delicioso. Macarrão era um luxo. Na Bahia comi palma picadinha, cozida como se fosse vagem. Carne de sol, é verdade, comi também carne de sol. Lembro, foi em Jacobina, a carne de sol estava saborosa. Perguntei ao garçom onde poderia comprar aquela carne, para levar pra casa. Ele então me disse orgulhoso que era feita ali mesmo no restaurante.
-- Muito simples de fazer, é só abrir a carne, salgar, passar coca cola e deixar dormir uma noite no sereno, no dia seguinte é só botar no sol até a hora de preparar para o almoço.
É preciso lembrar que o sol do Sertão é de rachar. Fiquei decepcionado, no meio daquela solidão sem fim, onde não se sabia o que era imperialismo e nem ditadura, preparava-se a mais brasileira das carnes com coca cola. É, não tinha mais jeito, aquela cultura corrosiva originária dos Estados Unidos, berço do ‘capitalismo selvagem’, tinha chegado pra acabar com tudo. Se soubesse da coca cola não teria podido saborear aquela carne com tanto prazer.
Cheguei nos confins da Bahia, ninguém, canto nenhum, estrada sem fim. Não havia soja e nem a cidade de Antônio Carlos Magalhães. Fiz, as necessidades primárias, ali mesmo, no meio do cerrado, deslumbrado com o céu azul e um silencio de fim de mundo. Foi uma homenagem, a mais espontânea, a um futuro incerto, à natureza, e ao cerrado que melhor estaria, se para sempre ficasse imutável. Homenagem ao impossível.
Ao longo da estrada fui dando carona aos sertanejos que em roupa domingueira se deslocavam à cidade ou vila mais próxima para votar. Era uma segunda feira, dia 15 de novembro de 1982, dia de eleições diretas para inclusive eleger governadores. Era o início do fim da Ditadura. Eu ainda não sabia que naquele dia seria eleito o ‘colégio eleitoral’ que escolheria Tancredo Neves como o primeiro presidente democrata, depois dos militares.
Cheguei às margens do São Francisco, em Ibotirama. Enquanto aguardava a partida da balsa que iria atravessar o rio São Francisco com os carros, pessoas me pediram carona até Barreiras. Enchi o carro, mais quatro pessoas. O passageiro ao meu lado, a princípio muito discreto, pensativo, distante chamou a minha atenção. A roupa era simples, o chinelo era de currulepe, chapéu de palha, tudo igual aos demais sertanejos, mas havia um quê de diferente. No princípio ele não falou nada, com aquele ar de sábio do sertão. Depois comecei a puxar conversa, a conversa foi ficando animada. Logo me dei conta e surpreso perguntei: amigo você tem curso universitário?
--É verdade, sou engenheiro elétrico, fui professor universitário.
– Não diga. E esta fazendo o que, aqui?
--Ah! É uma longa história. Difícil de acreditar até para mim. Fui durante muitos anos, depois que fui professor e engenheiro da CESP, um dos loucos da cidade de Barreiras. Eu nem sabia que eu era louco, nem que a vida podia ser diferente. Depois de muitos anos comecei a saber, me contaram, que eu era um dos mistérios e também um orgulho daquela cidade. O louco mais sabido que se ouvira falar. Às vezes dava palpites nas conversas, o que deixava todo mundo achando que louco eram eles. Horas tinha mesmo conversa de doido, jeito de doido e até rasgava dinheiro com muita raiva, o que era prova irrefutável da minha loucura. Não havia dúvida eu era doido varrido.
Ficamos em silencio por um tempo. Os outros passageiros, legítimos sertanejos, com muita sabedoria e admiração, não falaram nada durante toda a viagem. Só escutavam silenciosos aquela conversa que, quem sabe, poderia virar um romance de cordel.
A minha admiração e imaginação voavam alto. Um Tamanduá Bandeira atravessou a estrada, parei para admirar o animal que avançava pelo serrado adentro.
-- E então como foi isso?
-- Aos poucos e ao longo de um tempo fui tendo rasgos de memória. Contava pras pessoas que me davam comida e para os outros loucos da cidade. Todos riam das minhas conversas, sobre aulas de eletricidade na USP, brigas com colegas, sobre meus filhos e minha mulher, que eu não lembrava o nome, ou sobre nomes que falava sem saber quem eram.
Um dia houve uma pane de eletricidade, a cidade ficou as escuras, entrei na ‘subestação – SE’ da CESP, por uma passagem na cerca, que eu já conhecia, fui visto por alguém e para espanto de todos reparei o defeito. Meses depois lembrei o nome de minha mulher, dos meus filhos, e um outro dia falei o nome de um colega da Engenharia Elétrica da USP.
-- Ninguém quis investigar?
-- O Prefeito de Barreiras, ficou curioso e mandou um funcionário a São Paulo se informar na Escola de Engenharia Elétrica da USP, sobre um suposto professor que teria desaparecido ou adoecido, tinham o nome de minha mulher. O meu nome eu ainda não tinha lembrado. Em Barreiras ainda sou chamado o Doido Professor.
Assim foi que localizaram minha mulher e meus filhos, todos os três adultos e já formados e trabalhando, um já casado. Soube então da minha história.
-- Sua história é fantástica, ou é só mais uma maluquice?
-- Eu era Professor Doutor, e também Consultor da CESP. Envolvi-me com um grupo revolucionário, ALN, do Carlos Marighella, fui preso e muito torturado. Não se sabe como, eu fugi e vim parar em Barreiras. Cheguei aqui já louco e fui ficando. Não se sabe também por quê parei aqui. Aos poucos, lembrei-me das sessões de tortura. Em pesadelos ainda vejo uma cara horripilante e lembro de choques, é tudo.
-- Nesse tempo, quando do assassinato do Marighella, em 1969, eu morava no CRUSP, a residência universitária da USP.
-- Talvez tenhamos nos cruzado nos caminhos do Campus, da Universidade.
-- E, depois?
-- Minha mulher, coitada já trabalhava nos Correios, nunca teve tempo de casar de novo, com três filhos pequenos, sempre com esperança de me encontrar, os militares nunca informaram nada, foi envelhecendo. Conseguiu transferência para Barreiras, eu não tinha estabilidade emocional para viver em São Paulo e nunca se sabe, poderiam voltar a me prender. Hoje ela foi inaugurar uma agencia dos Correios numa vilazinha aqui do município e eu vim assistir, ela veio de helicóptero, eu não tenho coragem de andar de avião.
Chegamos a Barreiras, ele, já não lembro o seu nome de batismo, o Doido Professor, me convidou para um cafezinho em sua casa, que ficava do outro lado do Rio Grande. A frente da sua casa dava para uma ruazinha de terra batida. Uma casinha de duas aguas muito alegre com um jardinzinho com muitas flores. Convidou-me a entrar, atravessamos a sala e passamos por um corredor que levava a um salão ao lado da cozinha. A cozinha e o salão davam para o Rio Grande, que passava não muito longe, depois de uma estrada de terra que vinha bordeando o rio, um rio lindo, largo e tranquilo. No salão havia uma mesinha com quatro cadeiras, no canto uma rede dando para a janela larga, no outro canto duas enormes rumas de roupas. Duas espreguiçadeiras, na calçada olhando para o rio, depois da porta bem larga. Ele vendo que eu olhava com espanto, me explicou.
-- Quando a minha mulher vai a São Paulo ela compra essas roupas na Rua José Paulino, roupas que eu vendo aos ribeirinhos que vem pela estradinha ou de canoa.
Eu então dei uma sugestão de citadino capitalista.
--Por que você não organiza essas roupas em uma estante? Ficaria mais fácil.
Ele me olhou e abriu um meio sorriso irônico.
--Aí, eu fico doido de novo.
Ele me confidenciou ao longo do cafezinho, que quando as ideias ficavam muitas, a cabeça doía.
-- Ai, eu pego a espingarda e vou até aquela serra, fico lá uns quinze dias e volto calmo. Minha mulher já sabe, entende.
Dava pra ver uma serra a alguns quilômetros de distância.
Me despedi, daquela pessoa que bem podia ter sido eu, se tivesse sido torturado e tivesse conseguido fugir pelas estradas.
Eu sempre tive sorte, com toda a minha afoiteza e arrogância de filho de coronel do sertão do Ceará, que acreditava que não se dobraria à perversidade de ninguém. Isso porque nunca fui torturado. Não fui obrigado a constatar que era feito de carne osso e que sob tortura, a única maneira de escapar a total humilhação é ficar louco. Será que eu ficaria louco da cabeça, para não ficar louco de vergonha? Será que seria humilde o suficiente para saber que sob tortura não há valentia e nem orgulho? Nem nenhum demérito em contar tudo? A dor da tortura, é sabido, desde sempre, ser dor sobre-humana. Existem pessoas excepcionais que não se sabe como encontram, nas entranhas, forças e inteligência para enganar os torturadores com mentiras e conversas aceitáveis pelos algozes, mas ninguém sai incólume. Conseguem no máximo saírem lúcidas, da maior das dores e conscientes de que o homem é capaz das maiores perversidades. Tem almas boas que, mais tarde nas curvas da história, com todo o poder na mão, são capazes de perdoar e até de vencerem o imenso prazer, talvez só igualado em tamanho à dor da tortura, de se vingarem. Esses são os verdadeiros heróis. A história de Cristo é a utopia do perdão. A utopia do herói. Existem heróis, de carne e osso, do tamanho de Cristo.
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