10 PEQUENOS MELODRAMAS DE CADA DIA

1. Atração

Na rua, o buraco. O homem veio, despreocupado. Ia cair, mas deteve-se. Olhou ao redor, olhou para frente, bem além do buraco, olhou para o próprio buraco. Alguém gritou era perigoso, que ele se afastasse. Mas a hipnótica escuridão que vinha em ondas lá de dentro já tinha arrebatado o seu olhar.

2. Viagem

Havia uma lua redonda lá em cima. Mas a poça d’água não a refletia. O menino veio com seu barquinho de papel e navegou ali para sempre em busca do silêncio.

3. Esmagando rosas

Trazia uma pasta sob o braço. O paletó puído nos ombros, o olhar parado e triste, o sapato rugoso, a calça sem vinco, nada nele indicava ser o que era. Todos o temiam, quando passava. Só ele não sabia que era tão poderoso e seguia adiante sem olhar para os lados.

4. Iluminação

Ela gosta de cantar e trançar os cabelos. Só isso. Um dia, chegou à janela, olhou para o oriente e seus olhos se iluminaram. Quando a encontraram, o corpo rijo dobrado no parapeito, ninguém percebeu em seus lábios o riso envergonhado.

5. Ócio

Eram já cinco horas da tarde. Havia uma leve sombra a esmaecer o sol. Contou as badaladas do relógio da igreja e atirou uma pedra no bem-te-vi onomatopaico. Algumas folhas da árvore se desprenderam com o baque da pedra e a Terra continuou girando inapelavelmente em torno do Sol.

6. O amor é uma canção

Dulce tinha um namorado. Vinha vê-la à noitinha e saía sempre assobiando uma velha canção. Uma noite, os vizinhos ouviram-lhe os passos de sempre, mas não se registrou qualquer outro ruído. Chegaram às janelas, perscrutaram o silêncio e, depois de meia hora de inúteis conjeturas, viram Dulce sair pelo portão e subir a ladeira, no sentido oposto ao do namorado. Durante muitos dias, esperaram que ela voltasse. Quando já se haviam esquecido do incidente, um dia Dulce voltou. Estava abatida e puxava pela mão um menino muito loiro que tentava inutilmente assobiar uma canção.

7. Curiosidade

Não havia nada de estranho com ele: seu rosto se confundia na multidão, sua voz quase nunca era ouvida quando reclamava, suas vestes eram compradas em lojas de liquidação e seus gestos eram sempre muito comedidos. Mas o que ninguém sabia é que Augusto tinha um segredo. Mesmo os vizinhos mais curiosos nunca atinaram que o segredo que ele guardava ciosamente poderia comprometer a todos eles. Por isso, ao velório de Augusto só compareceu o padre, a quem ele odiava, e o coveiro, que ele não conhecia.

8. O mundo lá fora

A forma como ele abotoou o paletó quando se levantou para ir ao banheiro chamou-lhe a atenção. A sala de espera daquele consultório era abafada e, além do homem de gestos delicados e paletó cinza que acabara de levantar-se, abotoar o paletó e ir ao banheiro, só havia uma senhora gorda que usava uma daquelas velhas revistas de consultório para abanar-se. Luísa então percebeu que o mundo lá fora podia ser bem mais interessante do que maravilhar-se com um gesto tão fino quanto estranho de um homem alto e pálido que se levanta, abotoa o paletó e dirige-se ao banheiro de um consultório quase deserto em plena manhã de primavera.

9. Eu sou a sua sombra

Caminhava rapidamente de volta para casa. Já deixara para trás as ruas mais movimentadas do centro e alcançava as velhas alamedas que a levavam todos os dias para o antigo sobrado no fim de uma rua quase deserta. De repente percebeu que não estava sozinha. Havia algo ou alguém que a seguia, silenciosamente, sub-repticiamente, como um gato sobre o muro, como um rato no canto da parede. Parou estarrecida e percebeu, logo atrás de si, uma sombra alongada. Olhou para frente, para o sol, e teve um medo tão grande de que aquela sombra pudesse alcançá-la, que não atinou com o que havia acontecido quando acordou, muito tempo depois, com uma luz forte sobre o seu rosto.

10. Suspeita

Não tinha medo de nada. Descia todos os dias aquela rua escura, sem se preocupar com os muros altos do cemitério que acompanhavam a calçada deserta. Naquela noite, porém, depois de um dia extenuante de trabalho, parecia que havia olhos que o fitavam por entre as grades estranhamente entreabertas do velho portão negro.