Ciclotímicos cíclicos
O nome Gulliver suscita viagem. Tanto fantástica quanto real. Quem teve uma infância há de saber bem sobre isso, aquilo e aquiloutro. E foi Jonathan Swift, poeta, ensaísta e clérigo irlandês, nascido ainda no século XVII que gerou e gestou essa idéia ambulante.
Fora dos compêndios escolares, fomos nos deparar com uma Gulliver legítima, bicicleta de aro 26, verde, pneu frontal meio-balão, ainda carente de porta-corrente, mas em bom estado geral, que papai comprou ao Dito Nove Hora, carroceiro a tempo inteiro, residente nas imediações do cemitério municipal lá nos altos do São Francisco. O acerto não foi difícil, a pedida era razoável e papai, a despeito da inapropriada topografia da Velha Serrana, queria nos ver montados e móveis. E o aparecimento providencial do Jaú, também lá da redondeza, montado em sua Merckswiss foi decisivo para a transação, ao sentenciar, após detida verificação visual e manual, que a dita bicicleta não tinha quaisquer sinais de solda.
Demais, papai era mais entusiasta do que nós todos - eu, Beu e Caxi, juntos, não talvez por associar Gulliver a viagens, mas mais para dar uma boa sacudida em nossa natural paradeza.
O aprendizado veio com o tempo. Talvez um tanto mais estendido do que o normal. Pelo menos para mim, que era das aventuras mais da cuca, e menos da ralação de joelhos e tornozelos. E justamente foi mana Bebel, com suas pernas longas e sua intrepidez, a primeira a tirar esse cobiçado diploma.
Um ano, ou ano e pouco a verdinha ficou em nossas mãos e não consta que tenha cumprido a sina do Gulliver das histórias em suas viagens fantásticas. Foi repassada a um colega de fábrica de papai, de mamãe e meu, que tinha para ela um trajeto mais suave do que as muitas ladeiras do burgo, e mais utilitário pelo fato de morar mais longe.
E mais de cinquenta anos decorridos do apartamento definitivo da rodante de nosotros, eis que por meio da leitura de reminiscências de personagens, locais e episódios da cidade, as Pepitas de Pitangui, de autoria do inesquecível e inescapável Raimundo Quildário dos Santos - falecido há coisa de dez anos - deparo-me novamente com um registro que, no meu pensar pode explicar a gênese da Gulliver e como ela teria vindo parar em Pitangui, num tempo em que a Calói e a Monark, fabricadas no Brasil, vinham tomando lugar das Raleighs, Merckswiss, e Gulliver, importadas, sobretudo numa cidade tão afastada do mundo ciclístico - a diferença do que sempre foi a rival Pará de Minas, de topografia plana...:
pois bem, Quildário relata em passagem sempre interessante de sua obra, que ficara bem conhecido na cidade o episódio em que o dito Dito Nove Hora tendo ido a Belo Horizonte, que dista cento e poucos quilômetros de Pitangui, ficara tão indignado e aflito por não achar passagem de volta - ou quem sabe, de achar a própria rodoviária municipal - que, comprou uma bicicleta na capital e de lá rompeu para a sua Velha Serrana do coração. Teria sido na nossa Gulliver?