Ticintina e a paciência do bom pastor
Comendo um gomo de pão sovado pra acompanhar um golo de Coca-Cola depois da janta, assoma-se-me aquele gostinho, que recua umas seis décadas de vivência para colocar-me, com os irmãos à volta de tia Vicentina, contando-nos uma de suas histórias.
Mais que pajear, Ticintina nos enleava com suas reminiscências infantis, que sempre tinham enredo, princípio, meio e fim - até se passar para a próxima, a próxima, a próxima e aí, era papai ou mamãe que chegava da Fapa (a fábrica) e punha a cambada para dormir - não sem antes escovar os dentes...
E Ticintina pegava o pote d'água que havia tirado da cisterna e se mandava de volta pra casa de vovó, a uns trezentos metros esquina e morro abaixo. Mas antes de meter o pote à cabeça, cumpria o ritual de botar o coitezinho sobre a superfície da água para evitar que a mesma se derramasse nalgum solavanco do caminho e, cuidadosamente, enrolada a rodilha, acomodava-a ao cucuruto para dar mais equilíbrio ao pote, e conforto à caminhada.
E como paga pela água, contabilizavam-se as histórias daquela noite. Não raro, as histórias se repetiam, mas Ticintina era fiel ao script mental sempre. Sem aluir uma vírgula sequer. A menos escolarizada da irmandade que vivia ainda e sempre sob a asa materna de Dona Inhana - eram quatro mulheres e um varão - Ticintina não se pejava em ser criticada pelas manas por sua pouca, ou "menas" leitura. Sua memória o compensava generosamente.
Às vezes pegava era com suas cantigas, de ninar quase sempre em que palavras e situações misteriosas nos surpreendiam pela falta de paralelo ou explicação no nosso uniberço linguístico: Calai meu menino, calai meu senhor, que a faca que corta dá talho sem dor...ou então...Batata roxa, amarga que nem timbó...ou ainda...Faca na cinta, sinete na mão...
Puxando pela memória, pode ser que me ocorra algum exemplo mais daquelas cantigas que nunca ouviria da boca de ninguém mais... e que em momentos de nostalgia pre-anunciada eu até, confabulando com os irmãos me propunha a grafar aqueles excertos e pesquisar em bibliotecas, ou mesmo bisbilhotecas para conhecer-lhes a gênese, o significado mais amplo...mas jamais concretizei esse desidério.
E contudo, não me desacorçoei da vontade. O que nos convimos é que vovô Velusiano, pai de Ticintina teria vindo da Galícia, mas no breu das décadas ela continuou sendo de outra galáxia... E que aliás muito se aproxima de nós agora - ou pelo menos, dá essa sensação - por meio dos mecanismos de busca da internet, em que se destaca, de longe o Google...que contudo só pega e transmite, o que se lhe inserem...
Será que das alturas, Ticintina que aprendera a grafar tão-somente o nome próprio, pelo qual não tinha muita simpatia, por achar feio e que só o fazia para assinar nos dias de pagamento na fapa, Vicentina Justiniana de Miranda...pois é, quem sabe nos resplendores perpétuos os roliços querubins não a tenham incentiva a pegar da pluma e num pergaminho angelicar deitar suas memórias, em letra espevitada, com a paciência do bom pastor?