Apaziguando com o teatro, dando as costas pra mim.
A luz da iluminária aquecia meu rosto.
Estava uma noite gelada, num mês de julho, no oeste do Paraná.
Naquele instante eu parara de ler e me confortava, aquecido. Meditava. Cotovelos apoiados na escrivaninha. E diante de mim, uma pilha de livros e revistas e polígrafos eram como pessoas a me assistir e cobrar algo. Não saberia bem o quê.
Dois terços do dia eu lhes tinha como boas companhias, dessas que nos fustigam para que tornemos sujeitos mais atentos ao nosso presente. É!, esse tempo rarefeito que se dissipa ainda quando mal surge em nossa vida.
Já a percepção do que ele trás, não é tarefa de quem nos impele a enxergar. As letras apenas nos atiçam o miolo.
Além dessa vizinhança necessária aos meus dias compenetrado em leitura, ainda algo me atravessava o pensamento.
Um solavanco de idéias sinaliza, como a repetição dos dias e de meus afazeres, que outra necessidade conjugue com a vida teórica.
E a maior de todas e mais profunda e mais difícil, talvez seja mesmo superficial se encarada de outro ângulo.
Não há uma alma que possa me apanhar um chocolate quente.
Acentua o danado do frio, pois já são quase vinte e três horas. Lá está, sobre o fogão, basta colocar fogo. Faço isso agora! ou adormeço aqui, congelado, sem terminar o que comecei.
— O fósforo acabou. Que azar! —, foi o que murmurei de mais irritado.
Esse aquecedor de rosto é que não pode me deixar na mão. Luz? eu uso a do teto. A cor clara que cobre o mofo dessas três peças que resido, também auxilia. Oras, vou é me empanturrar com essas cuecas viradas e continuar dizendo.
Notado paradoxo em tudo que vivia. Era bem isso, o nome que quis dar.
Eles me acompanhavam de longa data, ou eu os trazia numa mala, embrulhado. Vai saber!
Desde a meninice, e até bem pouco tempo, eu sequer sabia dar nome a esta face estrangeira de mim. Não é bem uma face, é o que faz a face mudar quando o brilho que a contorna, deslumbra e faz o que era tão perfeito quase desaparecer.
Examinando toda vez que outro tomou o meu lugar quando eu menos esperava, e sentindo fortes dores de cabeça durante o tempo que permanecia alterada minha maneira de ser e agir, deixei isso pra lá. Passei a viver sem preocupação as mutações que antes me agitavam.
Não foi bem assim.
Retornei muitas vezes aos livros. Fiz isso antes de começar essa escrita, por pelo menos cinco horas. Questionei se eu questionava de maneira correta, ou se estava a me afundar cada vez mais.
Asseguro que não sou nenhum moço.
Eu havia aprendido aquela velha anedota em que durante muitos séculos após a época renascentista os homens procuraram o próprio eu, e, nos dias atuais, ainda se vê peregrinos fora de uma rota possível de se viver, enfurnados e entristecidos por não poderem encontrar consigo mesmo.
Tive de abandonar essa antiga versão do desespero humano.
Não sem dificuldades, porque, se a história de modo geral sempre teve o poder de persuasão, imagina uma história que nós aprendemos a contar ao nosso próprio pensamento, permitindo enraizar quantas verdades nos confins de nós.
Foi-se o tempo em que eu tolerava com o espírito cansado os golpes das letras precisas, que pareciam me dizer, e eu não ouvia seu canto plácido. Com o tempo as próprias letras nos sussurram e passamos a ouvir com clareza. Eis a verdadeira curiosidade, deixar o que não conhecemos produzir mudanças em nós, num repente. Clareza que não é certeza absoluta, mas um outro rumo para a história que se vive.
Palavra, não há nada melhor: ter a sorte de inventar sem se dar conta de que está sendo recriado.
Viajei com essa história, quase pronta, que ainda não aprendi narrar.
A iluminária é a mesma de quando eu comecei a refletir e ao mesmo tempo contar, claro, sem muita precisão. A palavra vem me dominando todo esse tempo.
Não estou mais na casinha mofada, na pequena e grande cidade de Toledo. Carreguei a escrivaninha. O computador, que travou enquanto lá escrevia. O celular de capa azul, com o visor trincado. Livros, cadernos, revistas, rascunhos, palavras e meu miolo. O frio se desfez, era coisa do presente.
É mês de dezembro, aqui em São Paulo.
Uma barulheira que invade a janela da casa, mal me deixa pensar. E isso não é problema.
Hoje percebo que as contradições se acentuam e podem se resolver, depende, quando há uma relação bastante estreita entre o leitor e os livros a que se dedica para pensar um tema relevante. E duas coisas as palavras me ensinaram de forma curiosa.
Uma delas é deixar o pensamento inefável repousar no fundo de mim, até que ele decida dizer algo na minha língua. E outra, sobre aquele paradoxo de estar sempre em busca de si. Que importa mais? Um eu fixo?
Não seria mais apropriado, em nosso tempo, saber como se colocar em cena...?
Nesse instante o sol se esparrama em meu quarto, numa medida que não chega ofuscar minha visão