AS MAQUINAÇÕES DO MAL
Hesíodo era um homem feio. Magro, tinha um andar oblíquo, o lombo encurvado, como quem carrega um peso nas costas. Tinha a face escaveirada, desdentado, com a pele amarelada como a de um sapo e ainda por cima, mancava de uma perna desde o nascimento, pois havia nascido a fórceps, como quem que não quisesse ter nascido.
Desde criança fora abandonado pelos pais, jogado de casa em casa, crescendo ora com tios, ora com vizinhos, e algumas vezes na rua. Mesmo assim, aprendeu a arte da ourivesaria e mantinha um pequeno quiosque em um shopping da cidade, onde além de relógios e joias, consertava quase qualquer coisa que as mãos caveirosas e pálidas tocassem. Por conta disso, era grande o vai e vem de pessoas em busca de seus serviços.
Sempre às dez horas da manhã, deixava o quiosque com um funcionário e saía para passear pelo shopping, conversando com um e outro, olhando as vitrines e falando entre jornais, sobre política e futebol.
Era um homem muito culto. Na solidão das noites lia livros e mais livros, pois nunca teve o afago de uma mulher. Além disso, contaminado pelas filosofias, tornou-se ateu ferrenho e escarnecedor, dizendo coisas terríveis sobre a cristandade. Discutia longas e intermináveis horas, sempre se encharcando de café e exaltando-se ao ponto de quase ter um aneurisma.
Havia um rapaz evangélico dessas igrejas pentecostais, que vendo a amargura ateísta dele, de vez em quando vinha e lhe entregava um panfletinho sobre mensagens bíblicas. Ele apenas recebia displicentemente, amassava e jogava na lixeira mais próxima. Certa vez, porém, um desses panfletos lhe chamou a atenção, pois estava escrito em letras vermelhas: “O que Deus quer de nós”? Considerou que aquilo era uma pergunta filosófica e esse guardou na carteira para ler posteriormente.
Certa tarde, estando ele em seu pequeno quiosque, surgiu de repente, uma bela mulher que, sorrindo-lhe com o mais belo sorriso que jamais havia visto, trouxe-lhe um broche de ouro velho para conserto. A presença daquela mulher o destreinou completamente, que mal conseguiu entender o que ela dizia, inebriado com aquela concupiscente e provocante boca vermelha, transbordante de lascívia, pois o pecado é mais fecundo do que a virtude. O pobre miserável tentou em vão esconder a feiura e a pobreza que o atormentava, mas a mulher não pareceu se importar. Ao sair, prometendo voltar no dia seguinte, ela tocou-lhe a face escaveirada com tanta meiguice que ele sentiu-se mal e uma diarreia morna lhe escorreu pernas abaixo.
Durante a noite não dormiu, varando a madrugada, adoentado, febril, lendo e relendo os “vinte poemas de amor e uma canção desesperada” de Pablo Neruda, delirando de paixão, remoendo-se de dor e de desejo.
“Áspero amor, violeta coroado de espinhos, brejal entre tantas paixões eriçadas, lança das dores, coroa da cólera, por quais caminhos e como te dirige a minha alma? Por que precipitaste teu fogo doloroso, de súbito, entre as folhas frias do meu caminho”?
No dia seguinte estava exausto, indeciso e nervoso. Fez o conserto da joia de ouro velho da mulher e a esperou febrilmente, tal um moribundo a esperar a morte.
A mulher chegou finalmente, mil vezes mais bela do que no dia anterior, mas ele já eivado e cego pela súbita e encaniçada paixão, não enxergaria outra coisa além da beleza dela. Em poucos minutos já estavam tomando café e conversando sobre o Céu, a Terra e as Potestades do ar. Ele não acreditava que aquela mulher o queria de alguma forma. Além do mais ele era pobre e feio. Ela, porém, gostava de ouvir suas palestras intelectualizadas e já tinha dito o quanto admirava o seu conhecimento sobre quase tudo! Em pouco tempo, já eram grandes amigos e se encontravam todo dia. Ele já desvairado de paixão, incrédulo, dizia a todos que deixaria ser levado por ela até mesmo até os confins do inferno, se realmente tal lugar existisse.
No entanto, nada ainda havia acontecido, até um dia em que ela lhe chegou provocante e insinuante, convidando-o para ir ao apartamento dela. Atônito, ele entrou no carro em que ela veio, um surpreendente sedan Lexus SC, que custaria algo em torno de cem mil dólares. Em poucos minutos já estavam no condomínio de luxo, numa cobertura no trigésimo andar, de frente para o mar. Foi aí que Hesíodo envergonhou-se de sua pobreza.
Ela entrou em um dos quartos, dizendo que iria tomar banho e vestir algo mais apropriado e que ele se sentisse à vontade e que podia se servir de alguma bebida. Ele notou que o silêncio dentro do apartamento era insidioso. Ele sentiu um odor acre de amêndoas... Quem sabe um perfume, talvez, imaginou. Naquele momento, atormentou-lhe também um sentimento de medo.
Pôs a mão no bolso de trás da calça e encontrou o panfleto onde estava escrito, “O que Deus quer de nós?”. Segurou o papel por alguns instantes e leu rapidamente Provérbios 18: “O nome de Jeová é uma torre forte. O justo corre para dentro dela e recebe proteção”. Sentiu um pouco de alívio, logo ele, um ateu convicto.
Como a mulher demorava a voltar ele pôs-se a explorar o local. Novamente sentiu o odor acre e viu uma porta entreaberta de onde parecia vir o cheiro. Empurrou a porta e atônito, deparou-se com uma cena impressionante. A princípio, ele pensou que fosse um quarto de UTI. Havia um homem imobilizado a uma cama de hospital. Ligado a ele, saíam diversos tubos sanfonados que alcançavam o teto e pareciam se conectar com o quarto ao lado. Apavorado, Hesíodo viu quando o homem acamado abriu os olhos e olhou para ele numa expressão de horror e dor. Era um homem ainda jovem, mas nas condições em que se encontrava ali, parecia já ter uns cem anos.
Os diversos tubos que saíam de seu corpo pareciam lhe sugar as entranhas. O pobre homem fez sinal com os olhos esbugalhados para que Hesíodo olhasse no quarto contíguo ao que estavam. Ao abrir a porta dessa vez, experimentou a real visão do inferno. Diversos corpos dilacerados estavam pendurados em ganchos, como em um açougue. Vários tonéis, cheios do que parecia ser gordura humana borbulhavam, deixando sair aquele odor acre de amêndoas.
Hesíodo saiu em direção à porta da frente, já sentindo o desarranjo intestinal. Pelo barulho do chuveiro, percebeu que a mulher ainda continuava no banho. Em seu desespero, desabou em lancinante carreira escada abaixo, desengonçado, arquejando como um cão. Sequer se lembrou de que estava no trigésimo andar. Quando enfim chegou embaixo, ouviu o barulho dos sapatos da mulher. Como ela havia chegado em tão pouco tempo era um misto de horror e preocupação. Pareceu-lhe ter ouvido uns gemidos por sobre o sussurro de vozes, como um som saído de um túnel. Era ela que o chamava carinhosamente. O sangue lhe gelou nas veias quando ela parecia estar cada vez mais perto. Lembrou-se então do panfleto evangélico e clamou em silêncio pelo nome de Deus, como havia lido nos Provérbios. Pediu a Jeová que o protegesse em sua torre forte.
No dia seguinte foi acordado por um vigilante. Estava todo sujo, encolhido dentro de um anel de concreto, no meio das ruínas de um edifício completamente abandonado. Descobriu que estava desaparecido há vários dias e por mais que contasse o que tinha se passado, nunca ninguém acreditou nele. Ele, no entanto, sabia agora que havia mesmo um nome a quem clamar nas horas de angústia e solidão.