ELE E A BELA

Este título é um plágio de A Bela e a Fera. Isso, entretanto, não tem importância, uma vez que a história é outra e diversa, sem semelhança alguma. E pode-se começar. Ele, seu Plácido, a bela e o neto (neto dele) – o triângulo amoroso. O diabo atenta, o fanhoso, a gente diz nas terras sertanejas do Nordeste Brasileiro – o fanhoso atenta. E as coisas acontecem. Às direitas e às avessas. É ter paciência para agüentar e coragem para contar. Paciência ele, seu Plácido, não tem, coragem sim. E vamos ao caso, para que fique o exemplo.

Chama-se Plácido Rosa. Plácido, que foi levado ao padre. Seus pais eram católicos romanos, ele não, foi incrédulo. Em religião, quero dizer! Na vida cria, na verdade. A verdade que se sobrepõe à mentira e à falsidade. Estas, coitadas, sobem, sobem escondidamente e lá um dia vêm à tona, explodem e o mau cheiro se propaga ao seu redor. Assim foi com ele, a bela e o neto dele. Foi, foi, até que explodiu. E fede...

Sua mãe chamava-se Rosa. Perdeu o pai muito cedo e pegou o nome da mamãe. Em sua terra é assim. É catingueiro do sertão cearense. Ali as crianças de origem humilde, são – Fulano de Beltrano. Se têm pai, será o nome do pai. Se não o têm porque é não sabido ou porque dormiu cedo, são Fulano de Beltrana. Ele ficou Plácido de Rosa, porque seu pai se despediu quando ele apontava para tomar-lhe o nome.

A bela se chama Solange. E o neto Sujoelo. Ora muito bem. Porque não são gente do sertão nordeste, mas gente sulina, de cidade grande -precisamente São Paulo, não têm esse cognome de pai ou mãe. São de Abreu, da Silva ou da Rocha, sei lá. O dela seu Plácido não sabia, nunca lhe disse. Dele esqueceu... Não, por que mentir? – registra. Não esqueceu não, prefere não declinar, para não envolver pai e mãe nisso aí. Basta que esteja ele envolvido na fedentina.

Como aconteceu. Aliás, como o Tinhoso fez acontecer. Começou há dois anos. Ele tinha oitenta e três, a bela quarenta. Diferença que ninguém crê que dê para juntar. Divorciado aos 76, quis se casar com uma moça de nível social equivalente ao seu e inicialmente a atraiu para o lar. Essa estava nos cinqüenta e cinco e era boa para o seu entendimento de que velha no lar, só quando a gente pega moça e envelhece com a gente. Pegar velha, não – é esparro. Seria uma fase de experiência, para não dar como a ex- esposa, que agüentou durante anos, para não prejudicar os filhos, que afinal se viraram contra si. Os herdeiros, enciumados, certamente na cobiçosa presunção de que seriam prejudicados na herança... “Filhos são assim, ele diz. A gente cria com mimos e amores, com zelo e dedicação, renuncia a bem estar, conforto e gozo para cuidar de seu futuro, pô-los adultos e doutores, tomam-se, a partir de bem encaminhados e bem sucedidos, por donos de nossa vida, supõem-nos obrigados a ceder sempre, renunciar em seu benefício. Se eu tivesse de recomeçar a vida ia me precaver contra filhos, isto é, evitar gera-los. Não queria nem um! Andaria com os bolsos cheios de camisinha. Agora é tarde para arrependimento”. E vai adiante com o caso. “Fizeram intriga, fofoca, uma barulheira. A pretendente correu”.

- Eu, ela lhe falou, com esses brutos que você tem em torno de si? Nem ver! - E foi-se embora.

Buscou outra, igualmente cinqüentona e de equivalência social e cultural. Também essa correu. Ao sair, disse pior que a primeira:

- Esses seus filhos são uns monstros!

E agora? Já se haviam passado cinco anos de rusgas e mal entendidos, de ofensas de parte a parte entre ele e os filhos. Ficar só, renunciar ao amor, ao sexo, roer seu final de vida sozinho, quando se sentia em boa forma? Foi quando apareceu a bela. É bela mesmo! Morena com traços de sangue oriental - cigana, olhos amendoados, alta, esguia. Riso franco e fácil, olhar de quem sabe o que é conquistar e prender um homem. Bela, a danada, bela. E, para ele, uma menina. Sem nível nenhum. Mal alfabetizada. Carne apenas. Ele pretendia a uma sua irmã, dez anos acima dela em idade. E a chamava de cunhada. Para agradar, claro, colher simpatia. A simplória da irmã é daquelas que querem, mas se fazem difíceis, retardam o acontecimento, vacilam! Ela, atenta e, diga-se a palavra exata, safada e mal intencionada, olhando, só agora ele se adverte disso, olhando para o proveito de explorar o velho, tirar-lhe o couro. Na moita, se insinuando. Lá um dia disse sem rodeios:

- Meu cunhado, acho que você está namorando errado – e jogou-se.

Ele, carente, não refletiu. Logo estavam na cama. Bons fins de semana foram os primeiros. Quando a pretendida descobriu, gritou-lhe (a ela) na cara:

- Traíra! – ela é quem passa a informação.

Hoje ele reflete. “Traíra nada, piranha!” Passa-se mais de ano no entra e sai. No começo, muito legal. Dormia aos sábados, quase diariamente sentava à mesa... Bebia vinho português, vez por outra uma dose de uísque, comia bacalhau... Sobremesa de sorve de chocolate... Gostava de bacalhau! Como gostava de vinho e bacalhau, de sorvete – de passar bem! E lhe tomava dinheiro, para sempre mais uma coisa. Ele, franco, liberal, ia soltando. A essa altura, os filhos distantes, sabendo que era duro e não tinha medo de duro, acabaram deixando de mão sua vida. Ou teriam sido aconselhados a isso. Sabe-se lá - ficaram longe. Cumprimentam-no cordialmente quando eventualmente o encontram e cordialmente ele responde ao cumprimento. E vai rolando o caso. A partir de certo tempo a bela começou a apresentar dificuldade para ficar com ele. Era complicado, dizia. Tinha um filho pequeno que não podia deixar só e não havia com quem deixar. Quinze anos, era a idade do garoto – garoto nada, rapaz. Rapazinho, digamos. Na verdade, tinha três filhos. Dois, os últimos com o ex-marido – ou ex-companheiro? Dizia que foi casada. Agora, remoendo as pequenas deixas, uma hoje outra amanhã, seu Plácido acha que não era casada coisa nenhuma, era só amigada. Antigamente se dizia amigação, mancebia. Hoje se fala – companheiro/companheira. A mesma coisa. Antes dessa mancebia, tivera, dizia, um noivo. E levou no ventre um filho para o segundo acasalamento, o rapazinho hoje de quinze anos, que na segunda separação ficou com ela e era registrado como filho de solteira. Dizia noivo. Noivo nada! No correr dos dois anos, palavrinha aqui, palavrinha ali, veio seu Plácido a saber que o sujeito era casado e vivia com a esposa. Então, não era noivo, era amante. E não reconheceu o menino como seu filho, não deu nenhum apoio, sendo um homem bem posicionado economicamente. Sinal de que sabia, ou ao menos suspeitava que ela transava com outro ou outros e a criança poderia ser filha de qualquer um. Só agora seu Plácido desperta para essas coisas.

“A sujeitinha se prostituiu na adolescência e sempre foi isso”, ele fala – uma desclassificada. Aos doze anos entrou como babá, em casa de uma família importante. E vai daí, que aos 14... A patroa descobriu que andava pelos cantos com os garotos da casa e até com o motorista. E lembrou ao marido que precisavam tirar aquela guria dali. Sua presença poderia criar embaraço para os meninos, mais cedo ou mais tarde. Com o próprio marido, pensou sem comentar, quem ia lá saber! Queria bem à mocinha. Inteligente, freqüentando a escola noturna... O casal tinha boa amizade com os diretores da VASP, ou com algum dos diretores. E ela foi de servente, copeira, coisa assim, colocada na empresa. Justiça se lhe faça. Apesar de pouco alfabetizada era insinuante e ladina, possuía um belo corpo e muita simpatia. Logo mais estava comissária de bordo. Diz-se comissária ou aeromoça? Não sei disso, quero dizer, dessa nomenclatura. Viagem, hotel, boa hospedagem, colegas... E estava uma grande mulher aos dezoito anos. Bonita, linda, pode-se dizer. Não faltava companhia para ficar e ela gostava. Por razão qualquer, que se desconhece, deixou a empresa ou foi por esta dispensada. Indenização, tudo direitinho. Ressalvas à parte, sabia agradar e se fazer estimada. Colocou-se na VARIG, ainda como comissária ou aeromoça. Conheceu o “noivo”, a bordo. Logo aí, dormiu com este. Homem escolado, hospedou-se naquela noite, no mesmo hotel onde a empresa hospedava seu pessoal. Gostaram da dormida. E ficaram mais de dois anos nesses encontros esporádicos de “noivado” - ela falava. Na VARIG não demorou muito e foi cortada. Ainda hoje briga na justiça por uma indenização. O “noivo” a bancou, custeou tudo. Bem podia fazer isso, tinha recursos. E a mulher valia o custo. Começou a desconfiar que ela escapulia e a afastou de si. Começou a desconfiar, é mal colocada a informação. Descobriu. Estava grávida e ele tinha razões para supor que outro seria dono da barriga. Afastou-a de si. O que viria a ser pai de seus dois últimos filhos, quem sabe um outro. Com este amigou-se. Falava ela que se casou. Casou nada, amigou. Este também, logo mais viria a desconfiar, a seguir positivar que estava com uma vira folha. As duas crianças já registradas, ele como pai. Parece que é, realmente, parece que é. Saber, saber - há sempre uma dúvida. Mulher que fica com mais de um, quem sabe lá! O camarada, porém, aceitou. Tanto assim, que esses dois, quando a largou, por convicção de que ela pastava fora, levou-os consigo e foi morar em lugar diverso, muito longe.

Agora seu Plácido engolindo! Também, pudera! Um homem de oitenta e três com uma mulher de quarenta... Só podia esperar que ela rolasse livremente. E, por sinal, não dava muita importância. Não havia compromisso sólido, de futuro. Só o compromisso de ficar, de oferecer presença. A bem dizer, pagava essa presença, não era mais que isso. Nem menos. Pagava. Ela dava presença. A partir de certo tempo, a presença começou a escassear. O pagamento não, esse ela não dispensava. E o bestão, ia sendo, já aí, explorado. Boa fé de passarinho percebia, mas buscava contornar. Por esse tempo, razão que tinha não se sabe, o ex lhe entregou os dois filhos. Sem pensão, sem nada. Nem o colégio, que prometeu e não pagou.

Foi, quando, em um fim de semana ela deu desculpas e não apareceu...Vamos voltar um pouco atrás, porque as explicações, no casso, são necessárias. Sem emprego, sem renda para sustentar-se a si e aos filhos, porque nem uma pensão conseguiu do último ex, com quem coabitou alguns anos, vivia de brisa, de sexta básica, de um pequeno apoio da mãe e da irmã. Tentou vender umas coisinhas aqui, ali, não deu certo. Uma pessoa do ramo de corretagem de imóveis deu-lhe uma oportunidade e nem assim, não vendia nada. Por esse tempo seu Plácido se relacionou com aquela mesma irmã que lhe dava a mão em um limitado apoio, porque pouco tinha. Era a que ele pretendia. Conheceu-a, aí, ao lado da irmã. Tinha dois imóveis a vender e um a comprar. Com a divisão dos bens no divórcio recente ficara sem o apartamento e morava de aluguel. Precisava rearrumar a vida e voltar a morar condignamente, no seu próprio espaço. Sabendo-a na área de corretagem de imóveis, bancou, em seu nome, o anúncio dos imóveis repetidamente. Sorte dela e sorte dele. Vendeu um destes. Foi o primeiro dinheiro em que pôs a mão depois de perdido o “noivo”. Do “marido”, ao tempo de “casada” ela não via tostão. Ele fazia a feira, ela apenas acompanhando. Nunca viu a cor dos seus reais. No é não é de anúncios, custo de imóvel, essas coisas, se insinuou e apontou o romance. Logo mais realizaria um outro negócio, a compra do apartamento onde ele mora. Gostasse ou não do imóvel, queria ajuda-la, fechou a operação. Foram os seus únicos negócios imobiliários. A partir daí ele já a bancava em todas as suas despesas.

Ia dizendo... Ia dizendo - em um fim de semana ela apresentou desculpas e não apareceu. Ele ligou o celular sábado e domingo, caía na caixa. Algumas vezes. Naqueles dias ela tentava uma colocação na GOOL, que por sinal deu em nada. E ia e vinha Salvador – São Paulo numa chamada fase de experiência de trabalho. Quando apareceu na segunda feira, disse que havia esquecido o telefone no carro. E tão perto o carro, durante dois dias não precisou do telefone nem se lembrou que alguém podia ligar? – ele interrogou. E a resposta – havia deixado o carro no Aeroporto. O Aeroporto Dois de Julho. Ora, morando em Plataforma, porque razão deixaria o carro no aeroporto para ir de ônibus e do ponto de parada a pé até a casa? Não dava para entender a desculpa, a mentira, diga-se corretamente. Ele não estrilou. Antes, fez que entendeu. Em outro fim de semana, o seguinte ou algum posterior, a mesma fantasia. Assimilou em silêncio. Afinal, pagava uma presença, que ainda limitada, aliás, falhando, lhe reduzia a solidão. E, para que enganar-se ou simular – estava gostando da infeliz. Renunciou aos fins de semana. Até que descobriu que estes eram de seu neto. Um cachorro! Os dois - ele e ela! Esse cachorro tem mais de 30 anos, 33 parece. Sem trabalho, sem emprego, sem biscate... O avô o sustentava. Já agora, depois de bronca sobre bronca resolve estudar. Está numa faculdade qualquer, inexpressiva. É alguma coisa. O avô custeia os estudos, paga curso, tudo. E em sua casa, para essa miséria! Poderia ser outro ele sabia que havia alguém. Este não, vendo-a consigo, sabendo de tudo, não! Isso é sujo demais!

Afinal descobre. Na Segunda feira depois dessa cruel revelação, de manhã, quando ela liga dizendo que estava vindo vê-lo, ele berra:

- Não me apareça, sua puta, nunca mais.

E agora, quem sustenta a feira a ela e aos filhos, quem paga a faculdade ao netão, quem os banca? Ele continua tomando o seu uísque e o seu vinho, comendo seu bacalhau, seu sorvete de chocolate... Tem outra para os fins de semana. E ela e seu garanhão? Sem renda, não podem bancar-se um ao outro. Não, não! Ela tem uns seiscentos, setecentos reais mensalmente, dois salários mínimos. Aconteceu que a patroa de seus doze anos pagava a previdência para ela. E desde então, nos demais empregos, teve-a paga. Ao perder o último, caiu em atraso. Mais de quatro anos. Lá um dia de cama lhe falou sobre isso e seu Plácido pagou todo o atrasado. Já contava tempo para aposentadoria. E ficou com essa lembrança para o resto da vida. É pouco, não dá para ela, os filhos e o marmanjo, que nunca trabalhou e com certeza vai terminar a vida na miséria. Começará este a cair agora. A verdade se sobrepõe à mentira e à falsidade. Estas, coitadas, sobem, sobem escondidamente e lá um dia vêm à tona, explodem e o mau cheiro se propaga ao seu redor. Ele? Aconteceu. Apenas aconteceu. Importa pouco, a vida continua.

* * *

“Nem sei porque, sopra encerrando o assunto –essa história me faz lembrar um passado de oitenta anos. Os vovós, velhinhos e bem comportados, pobres, sem proventos de aposentadoria, sem pensão residiam com meus pais. E eu à hora de dormir:

- Louvado sea Nosso Senhor Jesus Cristo. Bênça, pai!

- Para sempre seja louvado. Deus te abençoe, filho.

- Bênça,vô!

- Deus te dê sorte, meu neto.

- Bênça mãe, bênça, vó!

Duas vozes em coro, solenemente:

- Deus seja louvado. Os anjos do Senhor durmam contigo, filho!”

Em 05.05.05

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