A Comunidade Epicuréia
Lembro-me como se fosse hoje. O perfume intenso das flores ainda está impregnado em minhas roupas; às vezes sinto como se exalasse de meu próprio corpo. Posso recordar com clareza o brilho estranho e inspirador do céu, das folhas verdes das cachopas ondulantes que percorriam quase todas as paredes do grande pátio, as diversas tonalidades vibrantes dos cabelos das moças. Sinto, apenas, não ter trazido nada. Gostaria de ter alguma prova de que estive naquele alegre lugar. Para ser preciso, ainda me é confuso explicar como eu e Érico entramos lá, pois, para nós, era para ser apenas mais um dia de trabalho massivo em um colégio de freiras. Como modestos pintores, fomos escalados para retratar a imagem da Virgem Maria naquele convento, e não tínhamos motivação alguma para realizar tal encomenda. A igreja lucra muito e paga pouco, mas o que presenciamos naquele dia, valeu por demais esse esforço.
Conforme combinado, dirigimo-nos, eu e Érico, ás oito horas para o convento. Era um sábado quente e a previsão para o término da obra estendia-se além do dia seguinte. Como disse, era-nos desgostoso ter de ficar confinados um final de semana inteiro num convento, pintando um quadro que nos era igualmente desmotivador (sempre retratamos o surrealismo. Ímpetos seguidores de Magritte e Dali). Fomos recebidos por uma irmã velha e carrancuda. Sabíamos que a mulher mais nova daquele lugar ainda era mais idosa do que minha avó. Obviamente, gostaríamos de ter levado um aparelho de som para escutar enquanto trabalhávamos, mas ouvir Pink Floyd ou Doors num convento era, para nossas mesquinhas anfitriãs, um sacrilégio diabólico.
Na hora combinada, chegamos ao local. Enquanto Érico esboçava a imagem (esse serviço era sempre dele – primoroso ilustrador!), eu preparava as tintas e os pincéis. Quando a freira fechou o portão do pátio atrás de nós, trocamos algumas palavras e começamos o serviço. Conversávamos sobre música, mulheres e ideologias, mas a maioria do tempo filosofávamos. Era o nosso conforto ante o trabalho inconveniente. Para coroar nossa falta de sorte, pela janela da alta parede, ao nosso lado ouvíamos o perverso som de um órgão acompanhado de batidas semelhantes a címbalos, fermentado ainda pelo coro de algumas irmãs. Ritmamente parávamos o trabalho, resmungando ao fatídico som. Érico, vez ou outra, pensou em pedir para que parassem, mas nós precisávamos dos cobres e, embora recebêssemos pouco, era-nos de extrema importância conseguir dinheiro naquela semana.
Inconformados com a situação, passamos a falar mais alto. Meia hora ou mais se passaram até que cessassem com a barulheira. Nunca nos havia agradado os cultos, muito embora fôssemos descendentes de famílias católicas. Mas as horas não se mostrariam de todo insatisfatórias para nós...
Ao entardecer, com um terço da obra já terminada fomos acomodados com uma brisa refrescante que descia sobre os muros. Inevitavelmente, percebemos que todos os barulhos de volta cessaram. O ambiente estava tão calmo que parecíamos as únicas almas vivas naquele lugar. Continuando a pintura, fomos surpreendidos pelo ranger do trinque do portão. Érico já começava a resmungar algo como “lá vem elas darem opniões fajutas novamente”, quando, para nossa surpresa, duas belas moças entravam sorridentes no grande átrio.
Ou estamos drogados – comentou Erico – ou o cheiro forte da tinta está nos causando alucinações...
Nem uma, nem outra! - respondeu uma das moças com o cabelo liso e escuro que chegava à altura dos ombros.
Atordoado (mas contente), parei de costas para a obra, apenas admirando a beleza das duas. Erico fazia o mesmo.
Vocês não moram aqui, não é? - ousei perguntar. Um calor mágico queimando meu peito.
Claro que sim! - respondeu a morena – e vocês também! São nossos convidados a partir de agora.
Abusamos do ópio, velho amigo – Comentei enquanto olhava em direção a Érico, mas esse não me deu ouvidos, perdia-se ante a beldade de cabelos claros e cacheados a sua frente.
Perdemos por completo a noção do tempo. Quando voltei a mim, a bela morena já tomava-me aos braços. Obviamente, duas garotas como aquelas, com poucas roupas (atrativas, por assim dizer) não estariam normalmente num convento.
Queremos que nos acompanhem – falou a garota de cabelos claros, abraçada em Erico. Sua voz era tão calma e doce quanto sua beleza. Sem restrições, fomos levados ao outro lado do muro que, minutos antes, ainda era um velho e decadente convento.
Agora, havíamos perdido também a noção do espaço, pois, o que a instantes era um pátio azulejado, envolto por grossas paredes centenárias que revelavam janelas fatidicamente ornamentadas, esbanjava agora o esplendor da vivacidade e beleza nunca antes vistos. Havia bem no centro do saguão (onde normalmente era um poço baixo e coberto de musgos) um belo chafariz, construído e arrematado na forma de uma imensa cabeça humana como nas esculturas gregas. Este mesmo era rodeado de galhos espinhosos de vermelhas rosas, que enfeitavam a matéria branca onde era o cabelo esculpido. Das janelas, nos acenavam as mais diversas figuras com quem nunca tínhamos topado. Garotos e garotas, praticamente de nossa mesma idade, nos mais variados visuais.Todos gesticulando o famoso sinal hippie de “paz e amor”. As garotas – uma mais formosa que a outra – usavam pequenas e sensuais vestes enfeitadas com as mais diversas coroas e colares floridos. As paredes e muros ao redor eram adornados com as mais belas pinturas e inscrições poéticas, e no outro canto, havia uma espécie de piscina natural, onde alguns casais tomavam banho. Quão inpirador era aquela vista! Tão logo descemos as escadarias para chegar ao paraíso, fomos recebidos por um rapaz de cabelos e barbas longas que nos apresentou à fascinante congregação...
Bem vindos à Comunidade Epicuréia! Sem riscos, sem vícios, sem ganâncias. Apenas, o desfrutar das melhores coisas da vida.
Boquiaberto (e a essa altura já nem olhava mais para Érico, pois sabia que ele partilhava de minhas emoções); perguntei ao anfitrião sobre o lugar:
Comunidade Epicuréia? Não seria sociedade?
O rapaz baixou a cabeça e sorriu enquanto estendia a mão no meu ombro.
Nossas ideologias vão muito além das formuladas por Alvares de Azevedo e Bernardo Guimarães muito embora não fossem eles, esse paraíso jamais existiria. Essa agremiação é formada pelos mais diversos artistas. Uma verdadeira plêiade de pintores, escultores, escritores, poetas e atores, além de outros. Veja você mesmo... tudo é belo, pois foi construído apenas por visionários. Está vendo aquele chafariz? É o busto do famoso filósofo grego Epícuro, cujas idéias fomentaram o sonho de Azevedo e Guimarães a fundarem sua notável sociedade – hoje, essa bela e exuberante comunidade.
Arrisquei mais algumas perguntas, mas as respostas estavam em nossas vistas, no que escutávamos e sentíamos. Encontrava-mo-nos, agora, num inefável sítio aprazível de artistas, tão surreal ao mundo de onde viemos, mas imaginado por muitos, como nós. Havíamos encontrado, sem dúvida, o “paraíso perdido”... e não poupamos exclamações, tão fascinante era o lugar. Quando a multidão invadiu o pátio, percebi Erico envolto de belas mulheres auxiliando uma talentosa pintora em seu auto retrato. Jamais havia visto uma expressão tão contente em meu amigo, e tenho certeza de que ele deveria pensar o mesmo sobre mim.
No chafariz, um rapaz barbudo recitava poemas, ao mesmo tempo que os escrevia em blocos de papel. Quando percebi, estava rodeado das mais belas mulheres, e um turbilhão de odores perfumados invadiam-me as narinas. Fiquei embriagado com aqueles formosos corpos femininos, partes de fina pele roçando por todos os lados. Perdia-me em beijos e afagos, pois sabia que me eram permitidos naquele sítio. Fui arrastado para a piscina juntamente com minhas companheiras, Enquanto Erico deleitava-se com a mesma situação, ao pé de uma árvore...
Anarquismo puro! Intenso. Sem maldade ou depravação; apenas o total entregue às volúpias expressamente (e injustamente) proibidas de onde viemos. Lembro-me de Erico gritando alegremente enquanto olhava as núvens no céu arrebatador: “Se estou morto e este é o eterno descanso, jamais quero voltar a viver!”... Gargalhei jubilosamente ante essa sarcástica frase.
Depois da diversão dentro da piscina, convidei minhas companheiras para nos juntarmos ao meu amigo embaixo da árvore, e novamente ali ficamos, eu e Erico, com nossas fabulosas acompanhantes.
Utópico, meu caro amigo. - analisei.
Inacreditável – Erico suspirava a cada palavra – inacreditável. Estamos além disso; estamos vivendo o surrealismo ao pé da letra. Por favor, não repita mais a palavra utopia, pois ela me faz lembrar que tudo isso pode ser apenas um sonho.
Arfei ao comentário de Erico e concluí:
Sonhar não custa nada... não é isso que compõe nossas razões?!
Enfim, perdidos naquele intenso paraíso, adormecemos; porém, antes de serrar os olhos, senti o calor doce da boca de uma das minhas companheiras suspirando radiantes e delicados poemas ao meu ouvido... aquela fôra a última emoção na magistral Comunidade Epicuréia.
Quando acordamos, o bréu da noite tomava o pátio, iluminado fracamente pelo luar. A pintura em que trabalhávamos estava intocada, tal qual a deixamos, e tivemos sorte de nos levantar e situar-nos onde estávamos antes da freira carrancuda entrar pelo portão e resmungar o serviço inacabado.
Passaram toda a tarde aí e só fizeram um terço do serviço?! Como esperam que a igreja pague por esta desfeita?
Sem responder, juntamos nossos materiais enquanto a irmã continuava com seus vultosos sermões.
Estamos indo embora – retrucou Erico, bravamente – contrate outros! - e saímos infelizes pelo portão. Demorou um tempo de caminhada até que eu comentasse sobre onde realmente estivemos...
Eu não acredito que estávamos sonhando.
Não sei como, mas nós visitamos um paraíso. Vou dedicar tudo de mim para voltar o mais rápido possível.
Não vai te suicidar!
Não precisamos morrer para entrar lá. Comprovamos isso desde a hora em que acordamos.
Agora, lembrei dos belos rostos das garotas que flertaram conosco e, infausto, comentei:
Quer dizer que voltamos a infeliz existência... Bendito seja o artista que não compreende o mundo...
Maldito seja! - concluiu Erico – pois não voltamos à realidade, mas sim, ao degradante e avarento inferno...