Iom Quipur
Grafado em inglês como Yom Kippur, o Dia do Perdão, é a data mais significativa do calendário judeu. E sem sabermos determinar - até hoje - nossa ascendência genealógica, se mais pra judia ou pra moura, pudemos ao menos uma vez na vida experimentar, em família, essa indescritível sensação.
Havíamos nos mudado do povoado de São Gonçalo do Brumado para a sede do município de Pitangui, MG, a uma légua de distância apenas, em junho de 1958, com a razão precípua de seguirmos estudando além da educação primária. A condição para a mudança, contudo, era levarmos conosco a família de vovó, mãe de papai, que composta da matriarca mais quatro filhas e um filho solteirões tinha uma dependência quase atávica de papai. E queriam morar bem juntinho de nós.
À exceção de vovó, todos os adultos das duas famílias trabalhavam na fábrica de tecidos que operava em ambas as praças e fez a transferência sem percalços. Achar casas não era muito problema, juntas porém, sempre fugia ao esquema.
Até que um dia, com um mês de procura surgiram casas vizinhas, não distantes da fábrica e pelo menos uma delas era boa mesmo, bem construída, arejada, e de três quartos dotada. Tinha até os luxos dum armário embutido, uma cisterna e uma bananeira com cacho no quintal.
Já a casa ao lado mal passava dum arremedo de moradia. Tinha muito por fazer ainda, e até na cor de suas paredes, dum cinzazulado, perdia para o belamarelo da casaolado. E só dois quartos, para uma família que já tinha seis filhos que, ao cabo, perfariam a novena. A cozinha, incômodo cômodo agregado ao corpo da construção, não passava duma coisinha. Mas era o que tinha.
E as aquisições dos imóveis se fizeram, o primeiro de forma acertada, e o segundo, precipitada. Mas era aquilo, ou nada. E para liquidar a fatura papai teve que juntar à sua liquidez total que devia orçar nuns quarenta contos, um empréstimo de suas irmãs no valor de 64 outros contos. Era a nossa casa, nossa vida daqueles anos em que JK governava e valsava. Mas ainda sem a inflação brava.
E o acerto de repagamento foi verbal. Todo mês, assim que recebia seu ordenado, juntamente com o de mamãe, o quantum para a prestação era sagrado, o primeiro do montante destacado, e logo à casa de vovó levado. E mana Bebel era a portadora da moeda em papel. A estimativa era que pelo menos uns seis anos seriam necessários à integralização daquela liquidação.
Até que, quiçá um ano decorrido, dia do acerto mensal, mal passada a hora da Ave Maria, chega de volta a casa Bebel com o mesmo bolo de notas à mão, as mesmas que levara, e portadora da nova que as tias haviam decidido cancelar a dívida.
Papai, se não chegou a molhar a farinha do prato esmaltado em que comia, é porque tinha má pontaria. O pranto sem prato foi a riviria. Era o Iom Quipur e a gente nem disso sabia. Essa coisa da judiaria.