O estojo de Labelle
Labelle não havia desistido do sonho da merendeira, que vira com fascinação na casa de uma prima em viagem à capital na companhia dos pais, mas se contentaria com um estojo, daqueles de madeira, desde bem acabadinhos, em que a tampa se deslizasse suavemente nas incisões laterais e exibisse aquele arsenal de apetrechos como lápis de cor, lapiseira, borracha, caneta tinteiro e algum segredinho, bem
guardadinho, pois estojo que se preza, a lenda reza, não abre por inteiro...
Alguns seus colegas de classe, bem poucos é verdade, já tinham aquela preciosidade. Cada um, ou uma na sua forma, sua norma. E Labelle que é de que se conforma? Ao Pai do Céu já havia feito seu pedido, ao da terra, idem, e até ao papai Noel, mas com tanta prioridade paternal à frente de um estojo escolar, havia algo além do que vigiar e orar?
Na livraria-papelaria da cidade, A Escolar, ou nalguns armarinhos Labelle chegara a espiar, assuntar e até a pegar naquele etéreo objeto de seus sonhos, mas sem uma bolsinha bem forrada aquele doce toque valia uma cruel estocada. A realidade era crua, e nua. E rua.
Foi aí que se lhe despertou a criatividade. Não havia em casa algo semelhante? Sim, o pai que volta e meia no povoado do Brumado outrora era chamado com regularidade a aplicar uma injeção em pessoas perrengues de plantão, agora, na cidade, quase havia abandonado aquela função. Restringia-se agora a uma agulhada aqui, outra ali, mas quase tudo em causa e casa própria.
E aí Labelle só hesitou na escolha: dos dois estojos de metal, uma amarelinho, menor, e outro mais bojudo, pra injeção na veia, o maior, prateado, pegou o menor. Cuidou de enfeixar agulhas, seringa no que ficava, e partiu, cheia de si, com o que esvaziava. Não tinha muito o que lá colocar contudo. Um par de lápis, uma borracha já bem surradinha e uma medalhinha de Nossinhodasdores. Tinha também o distintivo do pai que ficava guardado na gaveta do armário dos nossos
documentos, mas não consumou tal ousadia. O estojinho em si já valia.
E valeu até quando Labelle o retirou da pasta escolar, pra algum exercício de aritmética. Alfredinho, menino mirrado e levado, e com injeções traumatizado, que lhe sentava ao lado, quando a inusitada cena mirou, sem perder tempo pra toda classe exclamou, como se
apontando um jacobino para a guilhotina: vai tê injeção e da braba! Cadê a xiringa, Labelle?
Centro súbito de toda a atenção da classe Labelle sentiu a agulhada. E passou a achar tudo quanto fosse estojo, um entojo.