ALMAS DE PERDIÇÃO

Abre-se a porta e se pode distinguir altissonante no vazio:

– Pobre do personagem que vive se segurando nas colunas-mestras da vida para poder senti-la no passo-a-passo. Vai daí a dificuldade do dizer de si, do revelar-se abertamente. O estar no mundo é cadinho de inspiração: ninho original desta centelha criativa que vem do aparente nada. O poema nasce deste facho, uma centelha que abençoa a confraternidade e alumbra a cumplicidade, assevera o moço de cabelos à moicano, apontando o dedo contra a lâmpada amarela, movimentando-se em direção à janela. Não tinha mais do que uns 17 anos.

Relata-se cantando baixinho, numa moleza de causar dó, e passa a ter, a seguir, uma inopinada compulsão, jogando o corpo para a esquerda, depois à direita, e então se despeja sobre a cama, num surto nervoso à moda de Florbela Espanca, ao delatar-se: minh'alma, de sonhar-te, anda perdida... Entregara-se ao lirismo de viver, de saber-se nele como uma pluma ao vento. Não o estar por estar no mundo egocentricamente, a figura egoica, porém o possível coração em irmandade com as gentes e as coisas, mesmo que por esdrúxulo prazer e gozo.

Levantando-se, num acesso, gira sobre os sapatos, e fala alto e pastoso, com o dedo em riste, docente noviço nos assuntos dos jogos do amar:

Desta sorte, tu és – tanto quanto eu – um ser condenado ao verso e ao reverso. Ora na vertical, ora na horizontal – em ação pendular. Querendo não querendo, raiz dúbia para a poesia que chega com sua peculiar e inusitada linguagem. Raízes entranhadas e esgarçadas nos redutos corporais e no que vai muito além dele...

Abre-se novamente a porta do quarto e adentra a moça loira, branquinha, magra, grandes e fundos olhos azuis, uns 15 anos talvez, com o nariz sangrando de tanto cheirar todo aquele pó amarelado que mais parecia um rastro de formigas que ficara sobre a mesa, tropeçando desajeitada:

– Para logo com esta balela de bobamente escrever o que não sabes sentir. Coragem! Abraça forte e atende à inocência que está escondida debaixo dos panos, sem falar nada que não seja baixinho, bem perto, ao ouvido, com alguma doçura.

Segura os lençóis que vou vazar da cama, salta, jocosamente, o oportunista e irreverente alter ego, levantando a cabeça e tapando o resto com alguma vergonha. Um líquido pastoso furta-se por entre roupas amassadas e o molengo colchão em desalinho no lastro, mostrando alguns preservativos usados.

Quatro horas depois, o atendente do hotelzinho barato, sentindo um cheiro de mofo muito forte, sobe as escadas e abre cuidadosamente a porta do quarto. No radinho redondo com uma luzinha que parecia querer fugir de tanto tremelicar, um pen drive vermelho sujo de um pó amarelo, cumpria sua função soturna: dava voz a Raimundo Fagner cantando Florbela.

A alma de sonhar se fora, perdida; aliás, cansada da vida, em perdição...

– Do livro POESIA DE ALCOVA, 2014/17. Revisado.

http://www.recantodasletras.com.br/contosinsolitos/5212707