Vitória de Pirro

Lá fora havia muita variedade de coisas, mas eram todas obrigações a serem cumpridas, da escola, da farmácia, dos colégios em que trabalhava, dos horários de condução...e assim um certo relaxamento vinha comigo para a pensão. Tinha deveres a fazer, anotações, tarefas, leituras, e até banho a tomar, mas tava ali no meu espaço, meu quase lugar.

O quarto era dividido com um estudante de engenharia, moço do sul de Minas, com o quem conviveria ali por dois anos e, embora só nossos horários de repouso convergissem, nossa conversa nunca passara dum oi pra cá, outro oi pra lá. E nunca nos divergimos tampouco.

Com os pensionistas do segundo quarto, que foram três ou quatro, ou cinco, ao longo desse mesmo período minhas interações eram mais frequentes nunca porém chegando a ser quentes. O café da manhã de invariáveis café, leite, pão e manteiga nunca tornava a gente mais áspera ou mais meiga. Era quase vapt-vupt, servido na sala e a administradora da pensão, a afro Vitória, sempre de prontidão - para retirar a mesa.

Os inquilinos, donos da pensão, que eram um casal, não apareciam lá senão de vez em quando, vindos de Formiga, e quiçá nem formigassem no terceiro quarto que lhes era sempre reservado. E trancado. Tinham duas filhas moças, uma que era um encanto, e vivia em São Paulo, e outra mais jovem, nem tanto, ambas tão raras e ariscas quanto os pais.

Vitória é que dormia no quarto quarto do apartamento, separado dos demais pela copa que se interpunha, e volta e meia tinha a companhia de uma outra agregada, Ester, de alheia morada, que costumava fazer mistério de seu mister. Costureira não-costumeira.

Vitória era empregada antiga da família, de toda a confiança, ex-babá das ex-crianças, mas que agora com a família criada, via-se um tanto afastada. Alta como um coqueiro talvez se incomodasse mais com esse aspecto do que com a idade que a levava para a quinta década de existência. Não se casara e ocasional, ou raramente, recebia a

visita de um namorado de similar estatura, estrutura, coloratura e figura. A rarefação desses encontros, entretanto, ia deixando Vitória mais infeliz, agravada ainda pelas neuras da filha mais nova do casal em soltar palavrões e em criticá-la abertamente.

Enfant gâté praquela menina-moça era pouco. Ainda bem que sua presença não era regular naquele simulacro de lar, num segundo andar, na esquina dalgum lugar nas proximidades do Minas Tênis Clube, em Beagá do finzinho dos anos sessenta.

Apesar de antigo, singelo de acabamento, ao topo de um sobrado, e povoado de forma tão diversa e discrepante, era gostoso o apartamento. De seus fundos, da janela do banheiro, podia-se ver os fundos do Palácio da Liberdade e com algum esforço, quem sabe, ver o Governador Israel Pinheiro de roupão, ou mesmo cuecão, todo a vontade, tomando seu café com torradas na cozinha palaciana. Eu diria que o vi, ou não crês no que então cri?

Um dia o estado de Vitória deu uma recaída, e se agravou. Era uma tarde, e somente eu e ela no pedaço. Não me lembra agora se ela chamou, ou se fui ao seu quarto de mero ímpeto de curiosidade de meus dezoito anos. A porta que sempre se mantivera fechada estava agora semiaberta. Completamente desnuda, ela se debatia na cama.

Minha habilidade para tentar alguma coisa, coisaté que nas minhas ansiedades juvenis me vinha em sonhos ou pesadelos, ali agora, ao vivo, esboroou-se. Quem era, quem sou, que suou...? Vitória, ao alcance dos inquisitivos olhos, da arfante alma, absolutamente desprovidad agora de calma, dei meia volta, e fui bater na porta do único apartamento vizinho. Chamar dona Cláudia, já quase velha, esposa do proprietário do imóvel, que atendeu prontamente.

E adiei, ou adeus dei, assim, à uma cura para minha minha sofrida castidade.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 29/03/2015
Reeditado em 29/03/2015
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